Crítica


3

Leitores


3 votos 6

Onde Assistir

Sinopse

Autor de Canto das Três Raças e O Poder da Criação, o compositor Paulo César Pinheiro evoca os momentos marcantes de sua carreira, desde as letras criadas durante a adolescência até a consagração com músicas interpretadas por Elis Regina e Maria Bethânia.

Crítica

  1. “Eu nasci em Ramos, no subúrbio carioca”. Chega a dar calafrios cada vez que um documentário biográfico se inicia com uma frase em primeira pessoa sobre o nascimento do artista, seguida de música ambiente e fotos da infância. (Narrações empostadas sobre infâncias alheias produzem receio semelhante). Isso decorre do fato que o cinema já explorou à exaustão o formato linear, cronológico e referencial, onde a vida de uma grande personalidade é narrada da juventude à velhice, pontuando os melhores momentos da carreira. Pelo posicionamento do conteúdo acima da forma e pela preocupação com as informações, ao invés das percepções, o formato se aproxima da estrutura de reportagens jornalísticas. Nestes casos, o cinema se coloca à mercê do protagonista: a câmera cede o espaço para que o biografado diga o que quiser, sem freios, nem expressões autorais em consonância ou discordância com o ponto de vista do personagem. A arte, humilde, estima que sua função se encontra na cessão do direito à imagem e à fala. O cinema se torna meio, mas não um fim.

  1. O cinema cria (às vezes). Bons tempos em que Jairo Ferreira falava em cinema de invenção. Nenhuma obra é obrigada a inovar, a reinventar formatos ou buscar experimentações de linguagem, e ótimos documentários exploraram narrativas convencionais. No entanto, lamenta-se a numerosa produção de obras tão limitadas em termos de ambição estética. Um grupo de biografias se legitima pelo amor ao outro, pela crença na necessidade de eternizar a história deste através do registro imagético, relembrando sua existência às gerações atuais e futuras. Assim, depositam sobre o protagonista toda a sua preocupação, esforço e carinho, incumbindo o cinema de preencher o tempo de suas falas. De certo modo, Paulo César Pinheiro: Letra e Alma (2021) constitui um exercício de ilustração, ao invés de criação, no sentido estrito de propor algo a partir do zero, uma imagem própria, um ponto de vista particular. O músico evoca passagens de sua vida que talvez fossem descobertas numa rápida pesquisa pela Internet. A direção se encarrega de incluir o máximo de falas junto a gravações de shows, com grandes intérpretes entoando as canções dele. Nos quinze minutos finais, um barco e as ondas do mar surgem enquanto forma de respiro em meio ao academicismo protocolar. É pouco, e é tarde.

 

  1. Preto e branco e azul. A escolha do preto e branco pode evocar nostalgia, provocar estranhamento em universos tradicionalmente coloridos, ressaltar as formas, favorecer a impressão de atemporalidade. Às vezes, ela representa mero sintoma de uma sensibilidade padronizada, do tipo que considera o preto e branco mais belo, as roupas de época, mais atraentes, as trilhas sonoras em pianos, mais comoventes, e assim por diante. Entre os fades vaporosos nos letreiros iniciais e o concerto apático com os filhos na conclusão, o compositor é registrado por um preto e branco indefinido quanto aos seus objetivos. Visto que a maioria do filme se passa ao longo de uma entrevista com o próprio músico, sentado em casa, a maneira encontrada por Andrea Prates e Cleisson Vidal para oferecer dinamismo às cenas constitui na mudança entre um ou dois ângulos diferentes do close-up frontal, porém sem revelar qualquer elemento novo nestas leves alternâncias de câmera. As imagens mudam pelo prazer de mudarem, ou pelo medo da inércia. Os cortes da montagem, passando do frontal ao três-quartos, sublinham o forte desnível da fotografia, que passa da luz natural à luz de lâmpadas, do preto e branco dessaturado a uma versão azulada. Pode-se supor que tenha havido problemas de finalização na cor e na própria montagem.

 

  1. Querido diário. Existe um valor notável em contar com o artista falando sobre si próprio, evocando anedotas e lembranças. No entanto, Paulo César Pinheiro aproveita esta oportunidade para fazer um autorretrato elogioso. Ele se gaba das letras complexas escritas durante a adolescência, exibe a estante com pilhas de gravações baseadas em suas músicas, sublinha o talento natural provindo de alguma força desconhecida (que ele tenta não compreender, com medo de perdê-la), o profundo conhecimento das religiões, a importância de ter atravessado décadas de música, a vantagem de ser uma rara pessoa capaz de contemplação num mundo de sujeitos apressados. Os cineastas evitam provocá-lo, colocá-lo em contradição, fazer perguntas incisivas. Eles tampouco fornecem outro ponto de vista para se equilibrar com aquele do protagonista. O protagonista reina sozinho em um filme feito sobre ele, e para ele. A presença do artista poderia resultar em reflexões sobre a música em geral, sobre a política e sobre o mundo, deixando claro que o indivíduo constitui também um pensador – a exemplo de Dom Salvador & Abolition, 2020, ou Emicida: Amarelo – É Tudo pra Ontem, 2020. Ora, Paulo César Pinheiro se mostra um especialista em Paulo César Pinheiro, e os diretores se contentam em escutá-lo. A construção do discurso se torna unilateral e incapaz de distanciamento. Nesta disputa de narrativas pela construção de uma história, o músico vence por W.O.

  1. Mas o filme informa! Que bom. Que pena. Uma argumentação comum para combater os detratores do talking heads diz respeito ao valor da informação. Ora, talvez a obra não tenha estrutura complexa, uso criativo de imagens, nem os depoimentos mais instigantes, porém ela oferece dados sobre uma figura importante da cultura brasileira! De fato, o documentário faz um resumo da carreira do protagonista, e servirá aos fãs e interessados em conhecerem o percurso de um compositor e cantor marcante. No entanto, cabe ao cinema esta função pedagógica? Utilizar um material de arquivo para se tornar outro arquivo – ou um meta-arquivo, comentário do comentário? O documentário possui inúmeras potencialidades de fricção, provocação, de poesia e metáfora em relação ao real. Ele é capaz de despertar reflexões (vide O Processo, 2018), torcer as formas e as temporalidades (Sem Sol, 1983), fundir-se organicamente com a ficção (Baronesa, 2017), evocar uma pessoa em sua ausência (Kurt Cobain: About a Son, 2006), traçar o panorama sintomático de uma classe social (Grey Gardens, 1975), provocar o espectador em seu próprio regime de crença, fazendo com que duvide de seu olhar (The Girl Chewing Gum, 1976). O documentário carrega potencialidades extraordinárias. Por isso, quando se resume a uma pequena aula introdutória, decepciona. Com pesar, descobrem-se os filmes com muita paixão pelo biografado, e pouca paixão pelo cinema.

Filme visto online no 26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em abril de 2021.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *