Crítica


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Sinopse

Ao sul de Tamil Nadu, na Índia, duas aldeias pobres são separadas por 13km de terras secas. Ganapathy, um homem alcoólatra e violento, pertence a uma aldeia, mas decide resgatar a esposa no outro povoado para forçá-la a volta para casa. Ele efetua parte do caminho de ônibus, mas principalmente a pé, acompanhado do filho do casal, enviado na tentativa de sensibilizar a mãe.

Crítica

O filme indiano é formado por certas tendências contrárias, que raramente conviveriam no mesmo projeto. A primeira oposição diz respeito ao cinema de aparência realista e o cinema fantástico. Por um lado, Pedregulhos (2021) aposta em cenas difíceis de falsear, com aparência de um documentário marcado pela mínima intervenção no meio. Assim, a armadilha para apanhar ratos, a cena com as patas dos animais sendo quebradas e o processo de cozimento dos bichos transmitem uma naturalidade crua. A troca de socos entre dois homens, em plano aberto e sem cortes, desperta a impressão de que o golpe foi desferido de fato. As longas corridas do garoto e de Ganapathy por terrenos áridos, novamente em plano único, reforçam a sensação de esforço real por parte dos atores. Por outro lado, alguns recursos explicitam a intervenção no ambiente para as necessidades da câmera - caso do bebê que começa a chorar no exato instante em que a câmera de aproxima, ou da cobra atravessando o caminho do pai em plano aberto. Objetos valiosos para os protagonistas são colocados à disposição no percurso: um belo pedregulho, um pedaço de espelho quebrado, o bicho de pelúcia. Pinça-se no mundo os aspectos exemplares do retrato social desejado pelo diretor P.S. Vinothraj.

Em paralelo, o longa-metragem se divide entre assumir um aspecto caseiro e buscar formas grandiloquentes de linguagem. A produção dispõe de orçamento limitadíssimo, o que não impede o autor de conceber longos planos-sequência, em grande angular, para acompanhar a caminhada dos personagens e revelar, ao fundo, a região Tâmil escolhida como cenário. Embora o sistema de estabilização de imagem seja pouco fluido, ele traduz o desejo de se colar ao tempo real, à experiência do calor e do cansaço, enquanto apresenta um fragmento indiano pouco presente nos filmes que chegam a esta parte do mundo. O enquadramento em scope é utilizado com certa elegância durante o percurso de ônibus (vide o balão vermelho para fora da janela), mas se converte em elemento de dificuldade durante a briga, quando a fotografia fica perdida quanto ao que priorizar. A imagem ora efetua belo trabalho de composição nos rostos e corpos dos heróis, ora deixa as luzes estourarem e perderem a definição dos cenários, quando o sol castiga as terras áridas. A decisão comum de acompanhar rostos e nucas conforme andam se alterna com quebras de eixo e rupturas do ponto de vista. A partir de vários planos subjetivos, o diretor surpreende ao revelar o personagem dentro da imagem que se acreditava corresponder ao seu ponto de vista, algo que Truffaut já tinha feito, com grande efeito, em Os Incompreendidos (1959).

Assim, traça uma estrutura em curto-circuito entre a pequena fábula intimista de um adulto e uma criança, ao longo de único dia, e o panorama amplo da sociedade indiana contemporânea. Sempre que possível, a câmera abandona os dois para privilegiar as dezenas de coadjuvantes ao redor: a mãe com seu bebê dentro do ônibus, o sujeito irritado com a fumaça de cigarro, os habitantes do vilarejo distante, a família cozinhando ratos, a professora de moto no trajeto do menino. O cineasta desenha um cenário de precariedade sem colocar os indivíduos em posição de vítimas, e destaca a falência da família principal longe da obrigatoriedade de uma reconciliação rumo à conclusão. Graças aos planos-sequência onipresentes, à altura dos olhos dos adultos, Vinothraj assume a postura de um observador curioso, disposto a capturar uma briga à esquerda até perceber uma conversa paralela à direita, e então deslocar seu foco. A câmera, assim como os personagens, está disposta a percorrer longas distâncias, voltando-se a qualquer pedra ou bicho pela trilha. Embora pai e filho estejam familiarizados com o trajeto, a imagem o observa com o deslumbramento de quem o conhece pela primeira vez. Por este aspecto, é fácil ao público estrangeiro se identificar com a abordagem.

No que diz respeito às atuações, o diretor busca um teor bruto e pouco polido, propositadamente. Pedregulhos desperta a impressão de conter apenas atores não-profissionais, valorizados por sua presença (o corpo, a evidente familiaridade com as caminhadas, os traços tâmiles) em detrimento de sua capacidade de composição. Afinal, a construção psicológica de ambos é ínfima: eles constituem figuras de um imaginário popular, no caso, o marido alcoólatra e violento, a esposa que volta para a casa dos pais, o filho retirado da escola. Chamado de louco pelos vizinhos, Ganapathy sofre transformação nula do início ao fim de sua maratona, o que também vale para o menino. O longa-metragem procura efetuar o retrato instantâneo de uma realidade, como uma fotografia de conjunto, ao invés de estudar suas possíveis origens. Em outras palavras, ele possui bom tato para a apreensão do meio, mas se priva de emitir reflexões a partir disso. Trata-se de uma bela obra de constatação, porém um drama fraco no que diz respeito à análise política dos fatos observados.

Enquanto road movie, a produção se distingue por se concentrar no percurso a pé na maior parte do tempo, evitando a premissa de encontros e transformações pessoais inerentes ao subgênero. O deslocamento se torna uma finalidade em si: o sujeito irritado e o garoto ressabiado seguem por uma rota, brigam, pegam um atalho, brigam novamente, então voltam à direção de onde vieram. Paira a sensação de que partem a esmo, num palco vazio e silencioso (a única canção da trilha sonora aparece na sequência final), destinado a possibilitar os sucessivos embates entre os dois, que ora se toleram, e em seguida, se detestam. O autor ameaça se colar apenas à perspectiva da criança, e depois, àquela do adulto, mas depois retoma a posição de árbitro imparcial neste ringue, sem tomar partidos. Compreende-se que o relacionamento abusivo data desde sempre na vida do menino, e não deve se encerrar tão cedo. Ao menos, ele compreendeu o funcionamento do pai, e desenvolve mecanismos de defesa e provocação - a cena do raio de sol nas costas do pai é bastante divertida e pertinente ao universo infantil. Saberemos pouco sobre os dois ao final da aventura, mas teremos completado um mosaico amplo sobre as relações familiares e sociais no sul do país.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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