Crítica
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Sinopse
A voz parece familiar. Comprova-se que é de um hipopótamo. Pepe, o primeiro de sua espécie a chegar na América, conta a sua história.
Crítica
Uma década atrás, os realizadores brasileiros Matias Mariani (Cidade Pássaro, 2020) e Maíra Bühler (Diz a ela que me viu chorar, 2019) dirigiram, juntos, uma combinação entre documentário e ficção batizada de A Vida Privada dos Hipopótamos (2014), uma narrativa um tanto fantástica que partia de dois episódios reais: os paquidermes perdidos na Colômbia após a prisão e morte de Pablo Escobar – que os havia levado até o país da América do Sul onde morava, vindo diretamente da África, apenas para seu prazer pessoal – e a decisão de Christopher Kirk, um norte-americano com interesses bastante específicos, em se mudar para lá e sair em busca destes animais já embrenhados na vida selvagem. Pois bem, o cineasta dominicano Nelson Carlo de Los Santos Arias (Cocote, 2017) também faz uso dessa história um tanto singular – os gigantes africanos soltos em um lugar estranho, e não o turista nerd em busca de confusão – para elaborar o seu Pepe, uma jornada por vezes poética, por outras perturbadora, por um continente em transformação, lutando para abandonar seu passado colonial, ao mesmo tempo em que se depara com mudanças que estão além do potencial que acredita possuir. Encará-las, portanto, se torna uma questão não apenas de honra, mas de sobrevivência. Esteja você em duas ou em quatro pernas.
Selecionado para a mostra competitiva oficial do 74o Festival de Berlim, onde teve sua première mundial, Pepe faz uso de um recurso presente também em outro título da seleção, o documentário Dahomey (2024), de Mati Diop. Curiosamente, os dois foram os mais premiados desta edição: o longa dela levou o Urso de Ouro como Melhor Filme, enquanto que o dele garantiu para si o Urso de Prata de Melhor Direção. E o que ambos possuem em comum? O exercício de dar voz àqueles que, de outra forma, permaneceriam silenciados. Se no longa que acompanha o retorno de objetos roubados séculos atrás ao seu país de origem quem se manifesta é um destes artefatos, por aqui não haveria personagem melhor para assumir essa tarefa do que um dos tais hipopótamos, a fera por muitos temida, mas que, uma vez dela próximo por meio do seu próprio relato, se transfigura em um ser de vontades e receios, do qual se é possível não apenas sentir empatia, mas também pena pelo destino que lhe compete, assim como torcida pelo muito que, porventura, talvez lhe aguarde. É quando o campo das possibilidades atravessa a lógica, elevando o conjunto para além de um retrato passageiro.
Los Santos Arias usa essa figura não como condutor, mas como intérprete de suas andanças, acertos e até mesmo vítima de um descaso estrutural que ameaçou não apenas uma região, mas todo um país. O infortúnio destes seres gigantes diante de uma realidade que não lhes pertencia estabelece um diálogo amplo, não só em relação ao homem que foi responsável pela vinda dos mesmos até este lugar distante e inesperado, mas também da condição de estrangeiros, sejam latino-americanos (ou seja, qualquer um do México ao sul) ou das demais localidades periféricas deste mundo, como a África neste exemplo. São viajantes querendo se encontrar, mas desprovidos de meios para tanto. Assim, vão aos poucos tomando conta daquilo que não lhes pertence, mas que, por meio da posse ou da invasão, deles acabará fazendo parte. O som gutural que parece vir das profundezas serve também como lembrança de um tempo distante, entre o sonho e a realidade, um chamado à razão que ganha força por meio do absurdo, do testemunho não levado a sério até o momento em que se torna realidade. Fantasmas que se materializam por meio do improvável.
Neste caminho, não serão poucos os que oferecerão suas colaborações na construção da lenda. Do pescador que acredita ter se deparado com um monstro aos motoristas que desconhecem a real natureza da carga que conduzem, do delegado surpreso por ser verdade as denúncias fantasiosas que até então por ele eram vistas como produtos de bebedeiras ou exageros cômicos às meninas que anseiam apenas por uma festa sem imprevistos, são todos, de uma forma ou de outra, afetados por uma crença que se recusa em admitir qualquer tipo de falsidade. Por isso que a mão do condutor se faz tão importante, pois é quem decide qual espaço cada uma destas histórias irá ocupar dentro de um cenário mais abrangente. Se por vezes parece se estender demasiado é pelo carisma que tais protagonistas assumem, mesmo que apenas em passagens pontuais. Por outro lado, um maior equilíbrio poderia oferecer ao conjunto maior dinamismo, acentuando a fluidez da narrativa e aproximando-a com maior efeito do espectador.
Quando tudo parece já ter sido dito ou explorado, eis que o hipopótamo volta a professar suas inquietações e esperanças. É ele, de nome Pepe, que batiza não apenas o filme, mas também uma das experiências cinematográficas mais insuspeitas dessa temporada. Eis aqui uma proposta ousada, que abraça o local da mesma forma em que respeita a amplitude do seu alcance. Uns levarão o feito pelo não explicitado, o fantástico pelo mito, e mesmo assim irão encontrar proveito nesta jornada. Mas, por outro lado, serão os que mergulharem desprovidos de amarras no exótico desta conjunção de elementos que melhor alcançarão o reflexo de um espelho destinado a ir além do factível. Estranho e irregular, é também ousado enquanto forma e provocador em igual medida pelo conteúdo que reúne. Nem sempre tais vontades conseguem se combinar com igual potência. Los Santos Arias não acerta em todos os passos, mas em nenhum momento demonstra dúvida em seguir em frente. E por isso, por esta determinação em assumir o risco, é que sua aposta se mostra tão válida.
Filme visto durante o 74o Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, em fevereiro de 2024
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