Crítica
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Sinopse
Sasha parte numa jornada íntima de autoconhecimento ao questionar sua identificação com o gênero de nascimento. Ela e sua família vão precisar lutar contra as amarras de uma sociedade preconceituosa e escrota.
Crítica
Tema que gradativamente vem sendo mais debatido entre psicólogos, a disforia de gênero ainda permanece desconhecida, ou como um grande tabu, para a maior parte da sociedade. A condição, definida como desconforto ou sofrimento causado pela discrepância entre a identidade de gênero de uma pessoa e seu sexo atribuído no nascimento, é retratada em Pequena Garota, por meio da história de Sasha, 8 anos, nascida num corpo masculino, mas que, desde seus primeiros anos de vida, externava o desejo/percepção de ser uma garota. Com uma filmografia que alterna constantemente entre a ficção e o documental, o diretor francês, Sébastien Lifshitz, segue dedicado a tratar do universo LGBTQ em seus mais diferentes aspectos. Se em Os Invisíveis (2012), por exemplo, a questão de gênero era abordada sob o ponto de vista da terceira idade, desta vez, Lifshitz vai ao extremo oposto, o que, obviamente, se apresenta ainda mais complexo e delicado.
A delicadeza, por sinal, define o tom geral do documentário, o que não significa que Lifshitz tente evitar o tratamento frontal das questões essenciais. Mesmo porque, a postura passional dos familiares, especialmente a mãe de Sasha, na busca para que a garota seja aceita pelo mundo tal e qual é aceita dentro de casa, não se prestaria a um retrato que não fosse sincero e direto. A delicadeza aqui se refere à sensibilidade, em ser capaz de realizar um mergulho na intimidade da família, mantendo sempre o olhar respeitoso para com todos, em particular Sasha. Imaginando-se o quão intimidador pode ser, para qualquer pessoa, ter sua privacidade exposta – ainda mais para uma criança de 8 anos obrigada a lidar com dilemas tão pesados –, é interessante notar como o diretor, mesmo sempre próximo, consegue reservar espaço para que a naturalidade de Sasha transpareça: brincando com os irmãos, escolhendo as roupas para sair, correndo na praia ou dançando, como na bela sequência que encerra o longa.
Contextualizando a situação através do primeiro encontro da mãe com um psicólogo, que carrega um peso de “culpa” materna, um sentimento – de que um suposto desejo inconsciente durante a gravidez pudesse resultar na condição da filha – Lifshitz passa a apresentar o retrato do cotidiano familiar em paralelo à construção de um conflito sólido, que guia a narrativa. É a luta dos pais para que Sasha seja reconhecida como uma menina na escola onde estuda que se torna o principal arco dramático do filme. Exceção feita às passagens em que os depoimentos dos personagens são feitos diretamente para a câmera, toda a construção narrativa imposta pelo diretor em torno desse conflito, da estrutura ao aspecto estético, faz com que, em diversos momentos, o longa se sinta mais como uma obra de ficção do que um documentário.
Um sentimento que surge não como demérito – por possivelmente sinalizar uma encenação excessiva, que imprima artificialidade à captura do real – , mas como uma qualidade, por se mostrar envolvente sem perder seu senso de realismo e, ao mesmo tempo, por se desvencilhar de certo didatismo que, em alguns casos, acompanha a linguagem documental mais convencional. Trazendo à memória ficções como Minha Vida em Cor-de-Rosa (1997) ou o excelente Tomboy (2011), Lifshitz insere o teor humano necessário no olhar lançado sobre a luta de Sasha. Há, quem sabe, breves excessos no uso de certos artifícios, como a trilha sonora visando realçar o teor emotivo de algumas cenas. De forma geral, porém, a condução do cineasta resulta equilibrada, deixando que a emoção flua naturalmente. Afinal, não é preciso muito para sentir a dor e a angústia contidas no choro de Sasha, e da mãe, durante as sessões com a psicóloga, quando a garota, tímida, fala sobre a vontade de ser aceita por seus colegas e professores.
Além do drama principal, Pequena Garota expõe também, mesmo que com menos ênfase, o resto da dinâmica familiar, incluindo uma possível carência sentida pelos irmãos, já que a questão de Sasha demanda muita dedicação dos pais. Algo que vemos de modo literal, em um diálogo da mãe com o irmão mais velho, ou de forma sutil, como quando a câmera capta garoto ligeiramente afastado observando a mãe e irmã fazendo compras. Talvez Lifshitz só não consiga mesmo dar conta de mostrar o outro lado do conflito central. Mesmo que se compreenda que o diretor da escola e os professores não apareçam no longa, seria válido tê-los como representações concretas dos obstáculos impostos pela sociedade a pessoas como Sasha. De qualquer modo, ainda que sem nomes ou rostos, os desafios que o futuro reserva à protagonista são claros. Resta ao espectador, assim como a Lifshitz, a esperança de que, com o suporte incondicional daqueles que a amam, Sasha tenha liberdade garantida para ser ela mesma.
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