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Sinopse

Em Pequenas Cartas Obscenas, a conservadora Edith Swan e a desordeira imigrante irlandesa Rose Gooding são vizinhas. Quando Edith e outros moradores da rua começam a receber cartas maldosas, cheias de palavrões involuntariamente hilários, a desbocada Rose é acusada do crime. As mensagens anônimas provocam uma comoção nacional, e um julgamento é iniciado.

Crítica

Há filmes tão discretos, que acabam passando desapercebidos dos olhos do grande público. Em muitos casos, isso é até justo. Mas não no que diz respeito a esse Pequenas Cartas Obscenas, um longa que desperta interesse pelo título, mais como uma curiosidade divertida, mas que irá prender sua audiência tanto pelos temas que aborda, como pelo olhar crítico que exerce a respeito de um episódio ocorrido cerca de um século atrás e que encontra repercussões até os dias de hoje. A situação em si – as tais ‘cartas obscenas’ – é não mais do que uma anedota, e por grande parte da trama como tal ela é tratada. Suas consequências, no entanto, podem ser enormes, num típico exemplo de efeito ‘bola de neve’, algo que pode começar pequeno, mas ganhando dimensões inimagináveis à medida que encontra espaço para se desenvolver. Mas há mais por trás destes eventos. É justamente pela complexidade dos sentimentos abordados, ainda que não estudados com profundidade, a eles lhes são permitidos vislumbres que ao espectador mais atento não acabarão perdidos. Por esses, eis aqui um discurso importante e digno de atenção.

Antes de qualquer imagem, um anúncio toma conta da tela: “o que você verá a seguir é muito mais real do que se poderia imaginar”. É diferente do usual “inspirado em fatos”, pois esses podem ser até corriqueiros e, ainda assim, render boas histórias. Mas o ocorrido que serve de base para a trama escrita por Jonny Sweet (em sua estreia no cinema, após ter trabalhado em séries como Chickens, 2013, e Together, 2015) parece ser tão absurdo que o alerta termina por fazer sentido. E isso por uma máxima não óbvia, mas repleta de verdade: a vida até pode ser improvável, mas a ficção não se pode permitir a tanto. Ou seja, são tantas as coisas inacreditáveis que se sucedem no dia a dia – o que se convencionou chamar de coincidências, por exemplo – que ao cidadão lhe é permitido o espanto, mas não a dúvida, uma vez que tenha ocorrido consigo mesmo. Já se o mesmo transcorrer em um livro ou filme, muitos serão os que dirão: “ah, mas isso não é verossímil”. E este é o fato: pode até não ser crível, mas não deixa de ser real.

Thea Sharrock (Como eu era antes de você, 2016) começa seu conto no exato momento no qual a solteirona Edith Swan (Olivia Colman) recebe a décima nona carta anônima. Com o pai (Timothy Spall) e a mãe (Gemma Jones, mais conhecida como a mãe da protagonista da trilogia Bridget Jones ou como a Madame Pomfrey da saga Harry Potter) ao seu lado, ao abrir a missiva se depara com mais uma leva de palavrões, xingamentos e ofensas. Já a identidade da autora da mensagem, por mais que não essa não tenha sido assinada, não parece ser um grande mistério. Afinal, tudo indica que seja a vizinha, Rose Gooding (Jessie Buckley), uma viúva de guerra que cuida sozinha da filha pequena ao mesmo tempo em que se diverte com homens e bebidas em pubs da região, não tendo papas na língua ao se dirigir aos valentões que a ela se dirigem. Uma é exatamente o oposto da outra. E se Edith é tão cordata e atenciosa, não faltando a uma missa ou aos encontros beneficentes, Rose é do tipo que não leva desaforo para casa. A pergunta que fica, no entanto, é uma só: por qual motivo esta gastaria seu tempo redigindo correspondências supostamente secretas, uma vez que não demonstra o mínimo constrangimento em ser quem é, sem mandar recados nem falar pelas costas de ninguém?

Que Deus nos proteja do cidadão de bem, afirma o sábio. Pois este é também o cerne dos acontecimentos mostrados em Pequenas Cartas Obscenas. O reencontro de Colman e Buckley (ambas interpretaram a mesma mulher, porém em diferentes estágios da vida, em A Filha Perdida, 2021, e se lá, por motivos óbvios, não chegaram a contracenar juntas, aqui dividem várias cenas, aumentando a curiosidade por essa reunião) é outro acerto, pois ambas possuem uma ampla gama de reações e sentimentos a serem explorados por suas figuras. Rose é estourada, mas emotiva, uma pessoa sincera e responsável, por mais que não reconheça a necessidade de se curvar aos demais para alcançar seus intentos. Edith, por sua vez, é dissimulada e engenhosa, repleta de artimanhas e segundas intenções. Vê-las se despirem lentamente das máscaras sociais que lhes são impostas e aos poucos indo em direção da verdade que ocupa suas identidades é tão prazeroso, quanto revelador. As duas são consequências de uma sociedade patriarcal controladora e ultrapassada. É triste, portanto, vê-las impostas às condições de “culpada” ou “inocente”, quando ambas são resultado de um ambiente tóxico e asfixiante, e de um jeito ou de outro estão apenas buscando sobreviver. Uma sem medo de dar a cara à tapa, diferente da sua oponente.

A trama detetivesca a respeito da busca pela verdadeira autora das cartas pode até gerar alguma tensão de início, mas não se sustenta por muito, uma vez que é fácil antever o que está se passando pelos bastidores. Felizmente, Pequenas Cartas Obscenas é mais do que um mero arremedo de Agatha Christie. Os fatos importam, sim, mas são os motivos, e principalmente, suas consequências, que fornecem os elementos para o debate e a reflexão. Da interferência de uma “policial oficial feminina” (presença decisiva de Anjana Vasan, vista em Killing Eve, 2022) à presença opressora de Spall, que constrói desde os pequenos trejeitos um ser assustador e repulsivo, tem-se aqui um conto que, num primeiro olhar, parece estar restrito a um vilarejo no interior da Inglaterra, mas que abraça tantos traumas e lutas por igualdade e reconhecimento de direitos que não pode, e nem merece, ser ignorado. Colman, que além de estar à frente do elenco é também uma das produtoras, oferece ao debate a importância que ele merece, sem nunca perder de vista a leveza e a graça de uma discussão que só parece ser inocente, mas que guarda uma urgência que não pode ser desprezada.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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