float(4) float(1) float(4)

Crítica


8

Leitores


1 voto 8

Onde Assistir

Sinopse

A chegada a um ferro velho cheio de carros mortos. Uma mulher acorda de um pesadelo. Jovens depredam um automóvel inofensivo que estava pacificamente estacionado.

Crítica

O automóvel já foi um símbolo maior de status e poder. Atualmente nem tanto, mas, em décadas passadas sujeitos bem-sucedidos assim o eram compreendidos por conta dos carros que dirigiam. Nos filmes de Hollywood, bólidos robustos e velozes também foram/são utilizados como sinônimos potencialmente fascinantes de autoridade e êxito – vide o sucesso da saga Velozes e Furiosos. Pois, em Per Capita a cineasta Lia Letícia faz alusões viscerais à natureza icônica dos veículos motorizados. Três adolescentes depredam um Uno estacionado numa rua erma. Poderia se tratar apenas de uma sequência longa e de certa forma repetitiva de vandalismo, mas a realizadora lança mão de uma construção sonora excepcional para exacerbar a natureza dos gestos. Pegando um pouco emprestado de David Lynch, um tanto de David Cronenberg, ela consegue um efeito potente de indeterminação. Cada estocada na lataria, cada vidro estilhaçado é pontuado pela trilha sonora com uma modulação semelhante aos ruídos de um ser vivo sendo golpeado. Espera-se logo um revide.

Lia Letícia instiga nossa expectativa quanto ao improvável. Dos garotos temos apenas o impulso destrutivo, a sanha de maltratar o objeto de quatro rodas estacionado. Essa atribuição de dúvida quanto à pura mecanicidade do auto ganha contornos por conta do comportamento singular dos agressores. Gradativamente, pancadas secas dão lugar a outros tipos de brutalização. Um dos adolescentes chega a simular que está estuprando o veículo, isso depois de sugestivamente abrir sua porta traseira. Um dos demais faz questão de urinar sobre o capô amassado pela consecução de batidas. Some-se a esse comportamento estranho o belo desenho sonoro e há como resultado um pequeno trajeto sinuoso e incômodo. Isso, justamente por conta da possibilidade de gerar inquietude no espectador. O inofensivo transporte pode demonstrar-se vivente e indignado, assim partindo à vingança? Christine: O Carro Assassino (1983) paira ali como fantasmagoria.

De Cronenberg, Lia aparentemente busca a fusão carne/máquina vista sobretudo em Crash: Estranhos Prazeres (1996). Porém, aqui o fetiche não é sexual, de enlevo erótico a partir de um diálogo entre prazer (vida) e pulsão de morte. Per Capita nem chega a ir tão longe, mas faz bonito com os poucos recursos e o tempo limitado, de modo mais subliminar. De Lynch, a cineasta parece se apropriar de conceitos como a ressignificação dos mitos/ícones – inclusive lançando mão de excertos de filmes nos quais carros são engrenagens essenciais –, a sobressalência do som para estabelecer a atmosfera e até a fusão de corpos/personalidades. Em dado momento, um dos bárbaros se transforma na mulher que antes tinha acordado esbaforida após sonhar com algo desestabilizador. Também do colega tido como notório neossurrealista, ela se apropria da vontade de borrar as fronteiras entre verdade, sonho e representação.

Per Capita vale por todo esse potencial efetivo e referencial bem aproveitado, dentro de uma série de restrições. De todo modo, Lia Letícia demonstra muita perícia na articulação de sons e imagens para atingir seus objetivos, estes distantes da mera ilustração de uma história ordinária com início, meio e fim. O curta abre com uma situação confusa, um deslocamento que aos poucos vai se mostrando a perspectiva traseira de um carro em marcha ré. Durante esse breve percurso, há a instauração de uma expectativa, da apreensão não apenas evidenciada pelas carcaças decrépitas do que antes foram automóveis capazes de distinguir pessoas ao lhes conferir status, mas também em virtude dos efeitos da fotografia a cargo de Pablo Nóbrega. Aparentemente não há uma coesão racional entre a mulher e os jovens, tampouco são apresentados os motivos que levaram o trio a destruírem o patrimônio alheio. O privilégio aqui é exatamente a construção dessa misteriosa área indeterminada, dentro da qual os limites do real são rompidos em prol de um trajeto sensorial.

 

Filme assistido online no 14º Cine Esquema Novo, em abril de 2021

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *