Crítica
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Sinopse
Naoufel é um jovem apaixonado por Gabrielle. Enquanto isso, em outra parte da cidade, uma mão decepada escapa de um laboratório de dissecação, determinada a encontrar seu corpo novamente.
Crítica
“Você está ouvindo a chuva?”. A pergunta é lançada em tom melancólico pelo entregador de pizza Naoufel à moradora de um apartamento, via interfone. Durante alguns minutos, estes dois solitários conversam sem se verem. Ele desiste de entregar a pizza, que se estragou no trajeto. Ela desiste de brigar com ele, por cansaço ou desinteresse. Assim, dialogam sobre a passagem do tempo, sobre a vista da cidade, sobre a sensação de não-pertencimento. Mais tarde, o mesmo casal se comunicará, novamente sem enxergarem um ao outro, apenas pelo som. Esta é apenas uma das belas correspondências encontradas em Perdi Meu Corpo, animação sobre pessoas banais que dificilmente teriam as suas histórias retratadas nas telas, especialmente dentro do cinema de animação. Nos papéis principais estão uma bibliotecária triste, o entregador desastrado e a mão decepada deste, após um acidente.
O protagonismo da mão autônoma poderia servir enquanto elemento de terror, ou mesmo de decalque cômico em relação à realidade. No entanto, o diretor Jérémy Clapin mantém uma dramaticidade lúdica, do tipo que não se apresenta com uma seriedade sepulcral, mas tampouco permite a autodepreciação. A mão se torna um personagem não-humanizado: ela não fala, não pensa, não efetua gestos impossíveis para o membro humano dentro num contexto verossímil. A mão em busca do corpo se assemelha a um animal acuado, movendo-se por instinto de sobrevivência. Esta configuração se faz presente no próprio desenho: a mão está visivelmente cortada, há menção à carne humana na altura do corte, porém sem sangue, ossos nem músculos. Entende-se a noção do corte, ainda que destituído da intenção de choque. Ao longo dessa história, a câmera oferece planos subjetivos do membro solto pela cidade (ou seja, imagens “vistas” pela mão) e condiciona a narrativa à deambulação desta.
A história será inteiramente contada pelo ponto de vista das mãos ágeis dos bibliotecários, as mãos ansiosas de um carpinteiro amador, as mãos feridas de um adolescente, a mão dos bebês que seguram dedos de adultos, além de pianistas, artistas e outros indivíduos cujo trabalho manual se torna uma expressão de suas identidades. O filme une os personagens pela descoberta do mundo e busca de afeto, ambos através do tato. Nestes momentos, Perdi Meu Corpo encontra sua maior beleza, e também sua organicidade estética e narrativa. Além da democracia refletida no gesto das mãos dadas ou separadas (os personagens de minorias sociais, incluindo o protagonista de origem árabe, são pequenos trabalhadores e figuras sem família), o membro solto pela cidade representa o luto de Naoufel, garoto que nunca superou a perda da mãe e do pai num acidente de carro, vivenciado com pesar e culpa.
É comum que metáforas para o luto soem acessórias dentro da trama, no entanto a noção do membro que sente falta do corpo e o busca pela cidade funciona enquanto metáfora dolorosa da separação com os familiares. Clapin demonstra um domínio impressionante da narrativa visual de pouquíssimos diálogos, enquanto efetua uma representação precisa do tempo e do espaço, brincando com a dilatação do tempo para os amorosos, a sensação de urgência da mão e o aspecto de impessoalidade da metrópole. Quando Naoufel se encontra no topo de um prédio, uma pichação indica: “Eu estou aqui”. A frase, em certo parentesco com as instalações “Você está aqui” de Tadeu Jungle, ressalta ao mesmo tempo o banal (isso vale para qualquer um, em qualquer lugar) e o especial (por se comunicar com o espectador específico que a lê), ou seja, o democrático e o único. Esta é uma das diversas felicidades tristes, das poesias cinzentas e chuvosas que atravessam a narrativa.
Resgatando a expressividade do desenho à mão (nada mais pertinente para um projeto destes), a animação combina os traços realistas dos humanos com fantasias possíveis apenas graças ao desenho – vide o homem-pombo, o astronauta na cidade, a própria autonomia da mão. A conclusão, como poderia se esperar, não procura qualquer forma de reconciliação ou otimismo forçado. “Não se ganha sempre. A vida é assim”, explica uma das primeiras frases do filme, diante dos infortúnios do amadurecimento. O niilismo, que percorre tanto o presente do personagem quanto os flashbacks em paralelo, serve de representação ideal para o jovem cortado de seus pais, da sociedade e de si mesmo. A transformação de uma metáfora física e explícita (a mão literalmente cortada) em um símbolo despido do caráter asqueroso, elevado ao patamar de transcendentalidade, reflete o êxito notável deste grande filme reflexivo, complexo e inesperadamente doce.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Bruno Carmelo | 9 |
Francisco Carbone | 9 |
Chico Fireman | 6 |
Daniel Oliveira | 7 |
Leonardo Ribeiro | 8 |
MÉDIA | 7.8 |