Sinopse
Crítica
Pautas identitárias e reivindicações por diversidade representativa são assuntos muito sérios. Atualmente, produções com pouca (ou rasa) multiplicidade étnico-racial e/ou personagens da comunidade LGBTQIAPN+ subalternizados, por exemplo, causam estardalhaço nas redes sociais. E que continue sendo assim, pois a pressão popular (leia-se, a dos consumidores) contribui à possibilidade de um panorama melhor. No entanto, é bom que justamente nesse momento de transição fiquemos alertas às iniciativas que supostamente estão atentas a essas questões da nossa contemporaneidade, mas que na verdade fazem parte de um neoconservadorismo cuja estratégia é camuflar como virtude o reacionarismo. Perdida é a adaptação cinematográfica do best seller brasileiro escrito por Carina Rissi. Sua protagonista é Sofia (Giovanna Grigio), funcionária de uma editora às voltas com a tentativa de emplacar em sua empresa a publicação de luxo do clássico Orgulho e Preconceito, de Jane Austen. Ela é uma descrente no amor, tanto que chega a ser desagradável quando a sua melhor amiga anuncia a repentina mudança com o namorado para a Austrália. Repetindo um modelo utilizado à exaustão no cinema e na literatura românticos, Sofia é a pessoa cheia de si que será ensinada pela vida sobre algumas coisas que a farão “cair do cavalo”. Com cinco minutos de filme fica claro que ela acabará sendo A romântica.
Além da simples reprodução de um tropo narrativo (a jovem cética que aprende o valor do amor), o trio de cineastas Katherine Chediak Putnam, Dean W. Law, Luiza Shelling Tubaldini quer transferir ao espectador a sensação de estar diante de uma protagonista empoderada. Tanto que logo no começo de Perdida, ela é vítima do revanchismo do colega de trabalho malsucedido ao convidá-la para um chope depois do expediente. A trama nos “vende” que Sofia é uma mulher forte, mas essa força se torna sinônimo de insensibilidade afetiva. Tanto que a felicidade somente sorri novamente quando ela assume a força devastadora da paixão e se aproxima de ser uma mocinha típica de contos de fadas. Na superfície, temos um filme que coloca na boca de sua protagonista falas emancipatórias, que se preocupa em inserir diversidade racial no cenário, mas que não está verdadeiramente atenta ao empoderamento feminino e tampouco à invisibilidade de certas populações minorizadas/oprimidas. Para começo de conversa, Sofia é mais tradicional/romântica do que anuncia, pois atrela o sucesso amoroso ao “felizes para sempre”, apenas depois proferindo falas constrangedoras do tipo “o amor vale à pena, mesmo que dure apenas alguns segundos”. Ao reprimir a amiga prestes a se mudar por conta do novo emprego do namorado, a protagonista sequer percebe isso e o filme não sinaliza a contradição.
Sobre a questão dos personagens negros em cena, a maioria deles é relegada à reles função de preenchimento cênico. Apenas dois têm algum espaço: a menina inspirada por Sofia (uma branca ensinando uma negra como se “libertar”) e o homem constantemente silenciado pela megera interpretada com gosto pela ótima Lucinha Lins. Sofia é arremessada num século 19 que mais parece a reprodução da Europa da época, embora até segunda ordem a trama continue acontecendo no Brasil. Geralmente quando temos isso de alguém voltando no tempo, o grande pulo do gato é compreender de que modo serão trabalhados os anacronismos, ou seja, como é mostrado o curto-circuito entre futuro e o passado no que tange aos costumes e aos comportamentos individuais/coletivos. Katherine Chediak Putnam, Dean W. Law, Luiza Shelling Tubaldini se esforçam para injetar alguma graça e leveza nesse conto de fadas antiquado, maquiado com toques de fajuta modernidade, mas os instantes levemente humorísticos e os resultados desses choques temporais são ineficazes. A Sofia no passado fala muito mais gírias e tem um comportamento bem mais descontraído do que no seu próprio tempo, o que deflagra um exagero de concepção, diante do qual os realizadores fazem vista grossa para acentuar uma diferença que seria perfeitamente reconhecível nos detalhes. Tudo é bastante previsível e falho.
Perdida mostra uma história de princesa. Servida numa bandeja lustrada para parecer novinha em folha, essa refeição rançosa tem gosto de anteontem. Dentro da ideia anteriormente citada do neoconservadorismo, Sofia é o ruído numa sociedade que trata mulheres como reprodutoras subservientes aos maridos proprietários de todo o poder do mundo. Ainda que se indigne diante das manifestações machistas e opressões às suas semelhantes nessa época distante, a protagonista continua num percurso de aprendizado em que a lição maior será a valorização do amor, nem que isso signifique abandonar seu universo pela nova paixão. O filme é tão avesso a enxergar os personagens como seres múltiplos, ora ambíguos, ora contraditórios, que não oferece subsídios de que o “príncipe” é mulherengo como diz a sua fama. Ele precisa ser um moço decente e merecedor, sem arestas. Os realizadores sequer contradizem as aparências, contentando-se com falas do tipo “mas você realmente se interessa pela opinião dos outros?”. Sofia tenta abrir os olhos dos demais (e, por consequência, tem os seus escancarados) munida da consciência manifestada em frases próprias à autoajuda. Desse modo, a roupagem clássica dos contos de fadas prevalece, mesmo que o filme sugira que estamos diante de um exemplar contemporâneo em virtude da “preocupação” com visibilidade, diversidade e empoderamento, aqui protocolos para esconder a saudade da época em que o amor “bastaria” às mulheres.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 3 |
Carlos Helí de Almeida | 2 |
Alysson Oliveira | 3 |
MÉDIA | 2.7 |
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