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Sinopse

Pierre Perdrix muda após a enigmática Juliette Webb entrar em sua vida. Ela modifica essa rotina como um meteorito emocional. Rapidamente, os integrantes da família Perdrix começam a repensar suas vidas.

Crítica

Em Um Amor Necessário, uma curiosa comédia romântica, nenhum personagem age como se esperaria de pessoas comuns em situações cotidianas. O policial Pierre Perdrix (Swann Arlaud) não acha estranho quando uma mulher desconhecida invade a sua casa e permanece para o jantar. Juliette Webb (Maud Wyler), a mulher desconhecida, joga os braços para o alto e grita como um personagem de desenho animado ao ter seu carro roubado por uma anônima totalmente nua. A mãe de Pierre, Thérèse (Fanny Ardant) é uma senhora ninfomaníaca que leva homens diariamente para a casa da família, com apoio dos filhos. Julien (Nicolas Maury) se especializou no estudo das minhocas, embora nunca o vejamos de fato praticar o ofício. Ocasionalmente, um tanque desfila pela pacata cidade interiorana, e um policial passeia pelado pela delegacia. Dentro de um gênero marcado pela previsibilidade, o diretor Erwan Le Duc dilui nossas certezas ao afastar a noção de realismo.

Um Amor Necessário corria o risco de constituir um mero compilado de esquisitices, filiando-se a tantas comédias independentes que reduzem seus personagens a tiques e manias. Felizmente, o projeto evita essa armadilha. Primeiro, ao invés de construir os tipos estranhos através de doenças ou psicopatologias (no modelo Pequena Miss Sunshine, 2006), ele prefere fazer com que todos se assemelhem através de uma solidão comum, fornecendo uma investigação psicológica plausível para justificar as ações curiosas do tempo presente. Segundo, o filme extrai parte considerável de seu humor da linguagem cinematográfica, ao invés de rir da fraqueza dos personagens. Isso significa que, ao invés de propor piadas nos diálogos, satirizando a solidão de Pierre e Juliette, o diretor prefere estudar de que maneira um enquadramento, uma iluminação ou um movimento de câmera pode provocar o distanciamento necessário ao espectador.

O resultado representa uma interessante incursão pela comédia autoral. Algumas cenas se abrem com uma íris, ao exemplo do cinema mudo; um retrato na parede tem direito a planos subjetivos (ou seja, o mundo observado pelos olhos da pintura); um movimento de câmera ao final de uma longa cena com Thérèse revela outro personagem no cômodo, o que transforma por completo o sentido da ação; um diálogo é repetido em duas cenas sucessivas, por personagens distintos, provocando resultados quase opostos. Há algo de Wes Anderson na maneira como Le Duc manipula a câmera, transformando-a em brinquedo capaz de mil invenções. Existe um frescor juvenil que se importa mais com a sensação de novidade do que com a elegância do conjunto. Pode-se argumentar que os recursos chamam atenção excessiva a si próprios, mas seria igualmente possível sustentar que a linguagem cinematográfica constitui um personagem tão importante quanto qualquer membro da casa, possuindo sua dinâmica e suas idiossincrasias próprias.

Além disso, a trama não se contenta com a simples história de amor entre Pierre e Juliette. Ele provoca outro estranhamento ao aproximar reflexões complexas (a filosofia de Spinoza, o existencialismo) da rotina banal dos policiais e familiares. O choque entre frases como “A sua vida é verdadeiramente sua?” e “Você precisa me dizer se eu existo ou não” ao lado de personagens entediados dentro de casa ou se espremendo num banheiro minúsculo produz um humor entre o físico e o intelectual, entre o popular e o erudito. As cores saturadas, a configuração nada naturalista dos cenários e dos figurinos sugere um universo fabular, como se todos vivessem numa casa de bonecas, ou uma dessas atrações lúdicas de parques de diversões. O aspecto pudico dos relacionamentos – fala-se em sexo, mas jamais se vê o ato sexual em cena – se combina com gangues nudistas e uma arma disparada ao acaso. Um Amor Necessário brinca o tempo inteiro com a consequência (o medo da morte, o luto não superado pela família após a perda do pai) e a inconsequência (a gangue que age impunemente, as buscas dos policiais que não surtem efeito).

Este mundo tão particular precisaria de um diretor de atores afinado, capaz de colocar todo o elenco num mesmo tom, nem ridicularizado, nem apático. Le Duc atinge esse resultado com maestria, trazendo certa leveza a todas as falas, porém longe da monotonia. Swann Arlaud mantém a tranquilidade diante de cenas extremas e depois se exalta em momentos banais; Maud Wyler se mostra sarcástica nos instantes mais românticos, e depois sugere ações violentas com um despojamento adolescente. Existe um permanente trabalho de desconstrução ao longo da fascinante narrativa proposta pelo cineasta. Embora fuja dos principais clichês da comédia romântica, o resultado funciona dentro do gênero, criando atalhos dentro dos quais a aproximação dos protagonistas ainda poderia acontecer. A cena em que os dois irmãos se encontram, ambos sangrando por razões diferentes, e afirmam que tiveram dias ordinários, resume bem esta proposta de distorção de tons, intensidades e estilos dentro dos códigos do cinema romântico.

Filme visto na 10ª edição do MyFrenchFilmFestival, em janeiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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