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Sinopse

Um retrato nada convencional e bem-humorado da vida de Paulo César Pereio, um dos principais atores do Brasil, cuja vida, pessoal e profissionalmente falando, é envolta em histórias impagáveis e exemplos de incorreção política.

Crítica

Não há como fazer uma lista séria dos grandes intérpretes do cinema brasileiro sem colocar nela Paulo César Pereio. Colaborador de alguns dos principais nomes do Cinema Novo, figurinha carimbada em produções ácidas do chamado Cinema Marginal, ele sobreviveu às mudanças de cenário cultural impostas por recessões econômicas e oscilações no panorama político, mas também deixou muita gente maluca pelo caminho. Equivalente em importância ao talento, seu comportamento imprevisível, vulcânico e tantas vezes grosseiro é a linha com a qual os diretores Allan Sieber e Tasso Dourado costuram os fragmentos desse documentário biográfico nada convencional. Primeiro ponto positivo a ser ressaltado: o fato de o filme ser incomum é, em si, uma homenagem a essa personalidade singular. O ator gaúcho é celebrado em meio a causos pitorescos contados por amigos, colegas, familiares e desafetos. Pereio, Eu Te Odeio demorou 23 anos para ser finalmente apresentado ao público – seu primeiro trailer foi divulgado em 2010. E essa verdadeira via crucis é incorporada ao resultado, ou seja, temos um filme sobre Paulo César Pereio que, dentro de sua proposta irreverente, faz piada com os percalços que colocaram em xeque a sua realização. Especialmente Sieber, cartunista e autor da proposta, narra com um misto de alívio e exaustão essa quase Odisseia para festejar em vida um personagem impagável.

A hagiografia é a biografia de santos. Esse termo foi ganhando conotação mais ampla com o passar do tempo, sendo utilizado para designar aquele tipo de filme marcado por excessos de elogios ao biografado, como se o estivesse canonizando. Geralmente, as hagiografias são um porre, pois negam a existência dos lados sombrios e/ou controversos das pessoas para criar uma falsa imagem imaculada. Allan Sieber e Tasso Dourado optam por um caminho radicalmente oposto em Pereio, Eu Te Odeio, enfileirando depoimentos que não “douram a pílula”, pelo contrário, expõem as facetas bizarras de Paulo César Pereio, da imprevisibilidade nos bastidores de seus trabalhos (inclusive de alguns dos mais celebrados) à atitude pouco ortodoxa na criação dos filhos. São diversos testemunhos preciosos alinhavados de modo aparentemente caótico, mas que cujo saldo é a imagem geral desse sujeito que protagonizou tantas histórias malucas quanto interpretou papeis inesquecíveis no cinema, na televisão e no teatro. Paulo César Pereio não é o tipo de personagem que se deixa reduzir a uma meia dúzia de características, tampouco cabendo em algum arquétipo. Como convém aos cineastas marginais que incendiaram o Brasil nos anos 1970, Allan Sieber e Tasso Dourado optam por uma postura diante de uma persona indomável e destrambelhada: enlouquecer junto. Por isso o filme é muito pouco “comportado”.

Pereio, Eu Te Odeio não é fruto de uma linha narrativa clara, nega a obediência cronológica e sequer cria blocos temáticos para a experiência ficar mais digestível. Um depoimento de Hugo Carvana sobre as circunstâncias nada rotineiras que marcaram o seu primeiro encontro com Paulo César Pereio é sucedido pela fala de um dos filhos do ator a respeito da dificuldade de classificar o próprio pai como alguém habitual. Aos poucos, juntando estilhaços capturados com formatos (e resoluções) de imagem distintos, às vezes separados por mais de uma década, Allan Sieber e Tasso Dourado oferecem mais uma percepção sobre o sujeito do que necessariamente algo que ilustre a vida pessoal e a sua trajetória artística. Em alguns momentos do documentário, testemunhas levantam a hipótese de que Pereio se perdeu nesse personagem desagradável que cospe no chão e fala impropérios nas situações mais inadequadas. E é interessante como o filme combina esses causos contados, as falas do protagonista e os momentos importantes de suas participações em obras emblemáticas. Os realizadores dão conta de fundir homem e seus personagens em vários instantes, logo criando a complementariedade (ou indissociabilidade) entre as camadas que sustentam essa tese do “cara perdido na ficção”. De certa forma, fica no ar também a admiração por essa figura cáustica, contrária ao bom mocismo enfadonho e careta.

Em tempos como o nosso, nos quais as redes sociais viraram tribunais repletos de juízes supostamente responsáveis e (auto)imbuídos de superioridade moral, Paulo César Pereio é um verdadeiro extraterrestre. Como homem público, nunca prezou pela construção de uma imagem comercialmente palatável, sequer fazendo gênero entre os seus pares. O longa-metragem não “passa pano” às grosserias e aos comportamentos absolutamente inadequados do seu protagonista, desfilando exemplos e testemunhos que nos levam a ponderar como deve ser difícil conviver com um sujeito sempre disposto a esgaçar qualquer tipo de limite. No entanto, também deixa muito claro o fascínio por essa persona cujas erudição e eloquência passam pela relação (às vezes abusiva) com álcool e drogas ilícitas, que tem na mais completa falta de organização do apartamento uma projeção do seu caos interno. Em pouco mais de uma hora e meia de duração, Allan Sieber e Tasso Dourado conferem substância e coerência ao material disperso capturado em mais de 20 anos, acrescendo a ele perspectivas atuais (como a mudança de Pereio ao Retiro dos Artistas em meio à pandemia da Covid-19). Porém, mantendo a linguagem condizente com a natureza corrosiva do maravilhoso personagem. Talvez não haja melhor maneira de homenagear alguém nas telonas do que reproduzir, em alguma medida, seu modus operandi em termos cinematográficos. E isso Pereio, Eu Te Odeio consegue, finalmente.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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