Crítica
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Sinopse
Crítica
A maioria dos filmes mostra situações excepcionais acontecendo na vida de seus personagens. Em qualquer escola de roteiro, a palavra “conflito” é uma espécie de norte, tida como o princípio por meio do qual se mantém o público envolvido e interessado. Diante de uma tarefa, de algum problema a ser resolvido ou de arestas a aparar, protagonistas são colocados em missão, na busca pela resolução que permita o encerramento da história e/ou o término do conflito. Claro, esse é um modelo que pode (e deve) ser subvertido em prol da diversidade e do próprio avanço do cinema enquanto meio de expressão. Em Dias Perfeitos, o cineasta alemão Wim Wenders vai ao Japão para construir um pequeno conto sobre a dimensão ritualística do hábito no qual os conflitos são acessórios, não os motivos de ser. O protagonista é Hirayama (Koji Yakusho), sujeito de meia-idade encarregado de limpar banheiros na cidade de Tóquio. Tudo o que precisa ser dito e assimilado sobre essa figura fascinante está na cerimônia diária, sem muitas variações, que consiste em: acordar, escovar os dentes, regar as plantinhas, vestir o uniforme, pegar um café na máquina, se deslocar ouvindo grandes sucessos internacionais por meio de suas saudosas fitas cassetes, desempenhar o trabalho da maneira mais minuciosa possível, tomar banho, jantar e voltar para casa. A primeira parte do filme selecionado pelo Japão para representá-lo no Oscar é, basicamente, composta de inflexões meticulosas desses procedimentos repetidos sempre.
Então, contrariando a máxima de que é preciso deflagrar o conflito e fomentá-lo para manter a atenção da plateia, Wim Wenders aposta na observação calma de um cotidiano que parece não ter nada de tão interessante. Deliberadamente se distanciando da noção de espetáculo, o realizador alemão nos obriga a prestar atenção à dedicação do sujeito às pequenas coisas, partindo de sua devoção pela ideia do trabalho bem-executado. Ele não higieniza, simplesmente, os ambientes públicos nos quais as pessoas atendem às suas necessidades fisiológicas. Mais do que a mecanicidade da função, o realizador ressalta o respeito do protagonista pela tarefa em si, não a colocando em uma perspectiva clichê de valoração social. O mundo ao redor pode até não dar o devido reconhecimento a Hirayama pelo serviço prestado diariamente, mas ele não se guia pelo senso comum, colocando paixão em cada gesto. Wenders faz com Dias Perfeitos uma homenagem ao já falecido mestre japonês Yasujirō Ozu – na verdade, reitera uma admiração manifestada anteriormente no documentário Tokyo-Ga (1985). Ele alude especialmente ao filme A Rotina Tem Seu Encanto (1962). Além do título do clássico nipônico funcionar como uma tese da qual Wenders parte para estudar o potencial encantador das rotinas, o alemão pega emprestado o nome de seu cativante protagonista, Hirayama, exatamente do longa-metragem reverenciado. É hipnótica a construção desse dia a dia feito de variantes quase imperceptíveis.
Em Dias Perfeitos, não temos acesso às profundezas de Hirayama. Tudo o que precisamos saber dele está na devoção quase religiosa à rotina. Manter as coisas do mesmo jeito é uma forma de ordenar internamente o mundo, uma estratégia pessoal para manifestar subjetividade numa realidade homogênea, digitalizada e marcada pela dispersão. Em certa medida, o filme pode ser equivalido a Paterson (2016), obra-prima de Jim Jarmusch em que o protagonista também acha conforto no sossego da repetição que enternece. Porém, na coprodução Japão/Alemanha, Wim Wenders evoca algo das filosofias orientais para emoldurar a história do homem simples que não pretende ser hoje e amanhã mais do que foi ontem. Esse aceno está presente na prioridade à contemplação, no cuidado com a natureza, no respeito ao próximo e na única vez em que ele é confrontado por aspectos familiares capazes de colocar em erupção um vulcão adormecido. Aliás, quando a importância do hábito está plenamente estabelecida, o roteiro assinado por Wenders e Takuma Takasaki ensaia uma mudança de rumo com a chegada da sobrinha que fugiu das asas dominadoras de sua mãe endinheirada para a proteção cuidadosa, não controladora, desse tio gentil. É perfeitamente normal que o espectador pense na novidade como um enorme risco à rotina e, por conseguinte, ao sossego do protagonista. No entanto, a trama dribla (de novo) o senso comum e mostra Hirayama acolhendo a parente, tentando a inserir na sua vida.
Este é o principal gesto de amor contido no filme: Hirayama recebe de modo altruísta, em seu mundo cuidadosamente arquitetado, a desgarrada por quem tem carinho e que pode se beneficiar de um pouco de paz. Já vimos em outros filmes situações parecidas, com personagens sendo obrigados a abrir um pouco a concha de proteção, com isso expandindo possibilidades de enxergar as coisas e vivenciar o mundo. Não é disso que Dias Perfeitos se trata. Wim Wenders não está preocupado com relações simplistas de causa/efeito, a isso preferindo compreender a rotina do protagonista como um terreno ética e emocionalmente sólido que pode beneficiar o outro, não como uma redoma artificial que deve ser destruída em prol da liberdade da larva ignorante quanto à capacidade natural de virar borboleta. Economizando nas palavras, o ator Koji Yakusho apresenta um desempenho absolutamente notável como esse homem simples que não será incumbido de uma tarefa transformadora e tampouco buscará no outro aquilo que lhe falta. O interesse amoroso pela dona do bar; a ternura diante do colega jovem acelerado, avesso dele em quase tudo; o pesar profundo no encontro com a irmã de comportamento antagônico; o acolhimento generoso a sobrinha; o flerte fugaz (por meio de olhares envergonhados) com uma desconhecida no parque; a conversa com o suposto rival que está sofrendo; o empenho no exercício de sua atividade como limpador de banheiros. Tudo isso é desdenhado com maestria.
Não à toa, Hirayama é um sujeito analógico que utiliza o telefone celular apenas em poucas ocasiões. Nelas, o aparelho (uma espécie de avatar da modernidade) facilita a comunicação com os superiores que precisam urgentemente contratar outro ajudante a fim de que a rotina do protagonista não seja comprometida. Só isso. Longe de encarar o personagem como um saudoso inveterado, um anacrônico que prega aos sete ventos contra a modernidade, Wim Wenders faz dele alguém despreocupado com a própria obsolescência ou mesmo com a obrigatoriedade de se adequar aos novos protocolos sociais para soar atualizado. O indivíduo simplesmente segue com as mesmas práticas que provavelmente lhe trazem conforto há anos, por exemplo, tirando fotografias com a máquina analógica e continuando a liturgia de revelar os filmes para somente depois verificar quais imagens merecem ser guardadas e quais serão descartadas. Hirayama é perfeitamente feliz em sua relativa invisibilidade, pois ele não existe em função das expectativas alheias, muitas vezes abandonando o próprio ego voluntariamente, como na cena em que ajuda o menino a encontrar sua mãe, é ofendido pela mulher elitista e mesmo assim exibe um sorriso triunfante – afinal de contas, o mais importante aconteceu: o filho voltou para a sua mãe. Wim Wenders acena aos seus senseis nipônicos, sobretudo a Yasujirō Ozu, como quem se apropria de uma linguagem essencial para a sua fala. E essa reverência aos mestres é uma atitude japonesa.
Filme visto durante o 25º Festival do Rio (2023)
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