Sinopse
Um homem narra sua história: a escolha de estudos, a relação com os pais, e principalmente o momento em que conheceu Pelin, sua futura noiva. Um dia, a jovem mulher lhe pede para matar a sua mãe, para que depois os dois possam se casar em paz. Onur começa então a descrever o passo a passo de um crime que foge completamente aos planos de todos os envolvidos, trazendo consequências graves ao casal apaixonado.
Crítica
Este filme oferece uma experiência singular ao espectador. Inicialmente, parece adentrar o estilo mais convencional de documentário biográfico, com o narrador dizendo quando nasceu, detalhando a relação com o pai e a mãe, seus estudos universitários, o trabalho. No entanto, um ruído na comunicação pode chamar a atenção dos espectadores: não há qualquer imagem dele, nem da família, durante esta descrição. Estamos falando realmente do diretor, que obviamente teria farto material pessoal a incluir? Cada trecho da longa narração é representado pelas ondas do mar, a rua vazia da cidade e outros referenciais de impessoalidade. Seria esta apenas uma representação pela ausência, o prazer de sugerir algo que não está lá, fazer com que o espectador deduza por conta própria o conteúdo não representado?
Então, primeira guinada: ao narrar a experiência com uma namorada, o narrador-eu lírico Onur nos informa que a noiva Pelin lhe teria pedido para matar a mãe dela. Esta seria a condição imposta para se casarem. As vozes não descrevem a motivação do crime, nem da mandante do assassinato, nem no homem encarregado de executá-lo. Supostamente, a mulher faria muita pressão na vida da filha, mas nada suficiente para justificar o assassinato. Segue uma descrição detalhadíssima dos planos da morte, enquanto a imagem ainda oferece fachadas de prédios, alusões vagas a locais, temporalidades e estradas. Seria este, então, um estudo de empatia, um teste sobre a nossa capacidade de identificação com um protagonista amoral, tendo confessado uma morte? Até que ponto esta seria uma ficção assumida, ou então um documentário sobre um personagem real confessando seu passado criminoso? Importaria, afinal, ao espectador saber o que acontece fora da tela, ou deveríamos nos ater à ambiguidade sustentada pela narrativa?
Logo, nova reviravolta. O título enfim aparece na tela, por volta da metade da projeção, abrindo caminho para que rostos humanos passem a ocupar as cenas. Encontramo-nos diante de uma ficção assumida, uma reencenação do encontro amoroso que antecipou o crime, e cuja descrição já havia sido fartamente explicada pela narração em off. O diretor Burak Cevik promove a adaptação de sua própria história, contando duas histórias em uma. Como em toda adaptação cinematográfica de um material não-imagético, tem-se um sentimento de frustração ou distanciamento: afinal, estes não eram os protagonistas que cada espectador imaginou em sua cabeça ao escutar a narração. Passamos da máxima autonomia proporcionada ao espectador – ele concebe as imagens por si próprio, tornando-se co-autor – à passividade descritiva da ficção tradicional, que apenas ilustra o teor narrado anteriormente. No entanto, detalhes são acrescentados, diálogos humanizam Onur e Pelin. Seria este, então, um exercício conceitual sobre a arte da representação, sobre a adaptação e as modulações do storytelling?
Estas são apenas algumas das pistas possíveis diante de Pertencer. Qualquer que seja a leitura adotada pelo espectador, o projeto jamais perde a sua caracterização de exercício conceitual, espécie de brincadeira com o público, dentro da qual o aspecto moral do crime e suas consequências permanecem em segundo plano. A morte da mãe de Pelin, seja ela real ou fictícia, importa pouco: o verdadeiro protagonista deste projeto é o próprio diretor, guiando não apenas a história, mas também as possíveis leituras desejadas. É possível argumentar que toda obra cinematográfica implica numa manipulação das imagens e dos sentidos, porém este projeto vai além ao escancarar a manipulação, fazendo dela o verdadeiro objeto de estudo de Cevik. Até que ponto as falas são confiáveis, uma vez que se originam do próprio réu, que teria interesse em atenuar sua culpabilidade?
O filme fornece indícios, aqui e acolá, de que não se leva muito a sério: quando Pelin lê um texto de sua autoria a Onur, ele reclama: “Não consigo entender quando leem para mim”. Ora, este foi exatamente o procedimento adotado na primeira metade de Pertencer. Depois, ao conversarem sobre cinema, ela dispara: “Não gosto de filmes com histórias irreais”, em referência ao próprio projeto em que se encontra, no qual os limites do real são postos entre parênteses. O filme nunca para de referenciar a si próprio. Pelo ritmo lento, as imagens fixas e as longas conversas entre os futuros amantes assassinos, ele valoriza a reflexão. No entanto, resta a impressão de que a forma de sobrepõe ao conteúdo, ou ainda de que as idas e vindas constituem um fim em si mesmo. Por mais interessante que seja a brincadeira, é possível que ela não passe de muito mais do que isso: uma provocação conceitual, autocondescendente e satisfeita demais com sua própria malícia. Existe uma questão ética importante negligenciada neste percurso, seja com a lógica da representação, seja com a história cruel de um matricídio.
Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019.
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