Crítica
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Sinopse
Peter von Kant é um diretor de cinema bastante respeitado. Dono de trabalhos elogiados, ele tem a sua vida virada de cabeça para baixo ao conhecer o belo e jovem Amir, com quem inicia um tórrido, intenso e destrutivo romance.
Crítica
O filme se abre sob o olhar de Rainer Werner Fassbinder, literalmente. Ao adaptar a peça clássica do escritor e cineasta alemão, François Ozon assume, desde os primeiros segundos, os laços de filiação ao apresentar os olhos de seu antecessor numa fotografia que preenche a tela inteira. Assim, transmite a impressão de estar sendo vigiado, observado pelo mestre. O francês não dedica a obra ao alemão, nem o homenageia, pelo contrário: ele a torna sua, assumindo a responsabilidade de adaptar uma obra preexistente. Peter von Kant (2021) foge à tendência pop de intensa referenciação ao original, que tem se encaminhado, no caso das produções industriais, à postura cínica e pouco inventiva. Diante do material de partida, alguns autores optam pelo formato servil ao texto, na pretensão de respeito sepulcral ao trabalho alheio; e outros enxergam nas citações múltiplas uma forma de se posicionar humildemente abaixo do precedente. Ora, esta obra contemporânea compreende a necessidade de ser infiel: as melhores adaptações, atualizações e refilmagens são aquelas dispostas a trair a estrutura anterior e propor algo diferente. Afinal, As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (1972) já existe, e não precisa de correções nem melhorias. Ozon preserva certos elementos em comum com o clássico: o dispositivo teatral, a ciranda de relacionamentos possessivos e cruéis, a permanência claustrofóbica no apartamento central.
Desta vez, o projeto feminino se converte numa ciranda dominada por homens gays, onde Peter (Denis Ménochet) possui o status de cineasta famoso. Curiosamente, ao se distanciar da abordagem de Fassbinder, o cineasta francês transforma seu protagonista numa interpretação pouco disfarçada do autor: um sujeito bissexual, conhecido por se envolver amorosamente com as atrizes e atores que dirigiu, e famoso pelos processos conturbados de criação. Para o artista de O Casamento de Maria Braun (1979), Lili Marlene (1981) e Querelle (1982), vida íntima e vida profissional se cruzavam de modo indissociável, a exemplo do que ocorre com Peter. Já o cineasta fictício é reconhecido pelos belos filmes, porém se encontra em crise criativa. Enquanto não desenvolve filmes, os amores constituem uma forma de dependência e possessão. Ele controla Karl (Stéfan Crépon), o servil ajudante e faxineiro que jamais pronuncia uma palavra sequer; sustenta o afeto de Sidonie (Isabelle Adjani), atriz decadente em busca de um novo papel para retornar ao estrelato; e se apaixona pelo jovem Amir (Khalil Gharbia), que se presta com certo desinteresse ao jogo lânguido de sedução pelo homem mais velho. A postura do garoto se traduz um mecanismo interessante: Amir nunca se encanta de fato com o mecenas e figura paterna simbólica, porém sustenta a relação de dependência enquanto as vantagens lhe convêm. Preserva-se da peça teatral a mecânica pessimista de amantes que se devoram.
Ozon sempre efetuou uso expressivo dos cenários, figurinos e canções kitsch, algo que funciona muito bem no universo de Petra/Peter von Kant. Sem romper com o naturalismo, cria uma espécie de estúdio amplo, multicolorido, repleto de fotografias e espelhos. É conveniente levar as crises passionais diante da parede vermelho-sangue; arrastar os surtos de ciúme e tristeza ao quarto azulado, ou deslocar o garoto prodígio à sala neutra das filmagens, onde Peter cria suas ficções instantâneas. Desenvolve-se um sistema onde a casa comporta diferentes climas, tons e funções, justificando a permanência do artista célebre no espaço doméstico. As menções ao mundo lá fora são artificiais, cartunescas: o vilarejo se assemelha a uma maquete infantil, e a noite se constrói pelo forte azul de refletores, capazes de transformar Hanna Schygulla, habitual colaboradora de Fassbinder, numa fada madrinha. Os painéis gigantescos com rostos por todos os lados permitem que o herói seja consumido por essas imagens maiores do que ele, e assustadoras, pois fantasmáticas, relembrando um instante de alegria perdida. Neste caso, o lar simboliza uma proteção e uma prisão: para onde quer que olhe, Peter se depara com um afeto perdido. É possível lamentar e repudiar, em igual medida, as atitudes do sujeito egocêntrico, tirânico e profundamente apaixonado. Trata-se de um mosaico de pessoas que amam errado, em excesso, mais ao outro do que a si próprios. Cria-se o coquetel perfeito para a tragédia.
Em paralelo, o longa-metragem oferece uma mistura equilibrada de humor e cinismo. O teor cômico vem do exagero: Ménochet constrói uma carência tão explosiva e caricatural que leva aos risos pelos arroubos impensáveis — “todas as histórias de amor são ridículas”, lembre-se bem. Ele encarna a perspectiva do sonho em oposição ao realismo banal e cartesiano de Amir, garoto tão enigmático quanto desprovido de pathos — ele não demonstra interesse profundo por nenhuma pessoa ou atividade. Khalil Gharbia ainda é um ator imaturo, sublinhando demais as intenções de Amir, porém o diretor explora essa juventude a favor do personagem impulsivo. Em contraste com a interpretação repleta de nuances de Ménochet, o resultado funciona. Já Adjani compõe uma diva de voz doce e roupas extravagantes, sempre pronta para seu close-up, e o excelente Stéfan Crépon desenvolve, apenas pelos olhares, um universo que evolui entre admiração, afeto, submissão, raiva e desespero. A ciranda possui subjetividades complexas pois contraditórias e repletas de falhas. Ozon os condena de maneira severa, porém com ternura: os planos de detalhe nos rostos humilhados servem tanto de lição aos maltratados quanto forma de carinho.
Peter von Kant se encerra de maneira cíclica — desta vez, com um novo par de olhos, passando adiante a função de supervisor. O projeto se abre e se fecha com homens observando imagens, apavorados e fascinados por estes simulacros de suas próprias vidas. Sem revolucionar o texto original, nem propor brincadeiras farsescas à la 8 Mulheres (2002), Ozon remodela os encontros entre homens nos anos 1970, embutidos numa obra contemporânea em termos de ritmo, discurso e preparação de elenco. Cada personagem interpreta outros personagens, numa ode tragicômica à arte cênica à idealização do cinema. Pelos enquadramentos precisos, discretos movimentos de câmera e exploração singela de signos importantes (as garrafas de gin, o corte da moviola no final), o cineasta comprova o domínio da exploração de espaços e tempos, tanto no dispositivo assumidamente teatral quanto naquele ostensivamente cinematográfico. É necessária a maestria das linguagens para efetuar esta ponte de maneira orgânica, costurando humor e tragédia, dentro de uma obra curta em duração e número de figuras em cena, correndo o risco de soar, erroneamente, como uma “obra menor”. “Você não pode amá-lo de verdade, ele é um ator”, explica Sidonie ao amigo desesperado. A arte é mentira e manipulação, ela relembra — deliciosa, sem dúvida, mas ainda assim, uma mentira. Aquele incapaz de distingui-la do real estará condenado ao inferno de repetições do qual Peter constitui um exemplo tão belo.
Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.
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