Crítica
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Sinopse
Piano de Família revela a batalha que está se formando na casa dos Charles. No centro dela está um precioso objeto deixado como herança familiar, separando dois irmãos. Um deles planeja vendê-lo para aumentar a fortuna. Já a irmã fará de tudo para manter o único vestígio desse legado familiar. Exibido no Festival de Toronto 2024.
Crítica
Boy Willie sabe bem o que quer. Berniece, então, tem a mesma certeza. Os dois moldam suas existências a partir de um único objeto: o piano que carregam e que tanto representa. Para ele, ali está a possibilidade de um futuro melhor. Para ela, a lembrança de um passado dolorido para o qual nunca mais voltar. É tanto um ingresso a um mundo novo, quanto um lembrete de onde vieram. Mas há apenas um daquele móvel imponente, bem posicionado no arranjo da sala. E decidir o que fazer com ele – vender ou manter, dele obter frutos ou a ele se agarrar sem permitir afastamento – é o que os irmãos precisam decidir. Em Piano de Família, os laços que os unem, também poderão afastá-los. E alcançar este tipo de entendimento, tanto no ontem, quanto no hoje que agora se desenrola, não é tarefa das mais fáceis. Mas o prêmio que promete parece justificar tal esforço. Assim como esse filme, duro em suas colocações, mas certeiro no debate que propõe.
Interessante entender que o confronto que se dá em frente às câmeras é fruto de um alinhamento nos bastidores. Piano de Família é escrito e dirigido por Malcolm Washington, tem como protagonista John David Washington, do elenco participa ainda Olivia Washington, enquanto Katia Washington assina como produtora executiva. Os quatro, como o sobrenome entrega, são irmãos e filhos de Pauletta Washington, também atriz (e igualmente vista em cena) e do astro Denzel Washington, que dessa vez se manteve por detrás das câmeras, mantendo seu envolvimento apenas como produtor. Ou seja, por mais que o título original não deixe tal referência explícita (The Piano Lesson, ou A Lição de Piano, em tradução direta), este longa é, de fato, fruto de um esforço familiar. Um entrosamento que se reflete nos personagens e na dinâmica que rapidamente é estabelecida entre eles, seja pelas ágeis trocas de diálogos, pelos olhares que revelam mais do que suas palavras e pela tensão que o tempo todo tangenciam, explorando-a apenas quando não se há mais o que ser feito.
Assim como o pai fez com Um Limite Entre Nós (2016), Malcolm da mesma forma partiu de uma peça de August Wilson nessa sua estreia como realizador. Adaptado antes como um telefilme de 1995 estrelado por Charles S. Dutton e Alfre Woodard, Piano de Família não esconde suas origens teatrais, e mantém no texto e na força de suas atuações seus maiores méritos. O diretor, no entanto, pontua o andar dos acontecimentos com intervenções pontuais, e por mais precisas que se revelem, também marcantes se confirmam. Uma delas é o flashback que abre a história, quando se descobre que o piano foi roubado no meio da noite, de uma casa imponente de senhores de escravos, em pleno Dia da Independência. Depois, um número musical reafirma Samuel L. Jackson (aqui como o tio que tenta mediar as desavenças dos sobrinhos) como um dos grandes de sua geração, permitindo que o vulcão que há muito acreditava estar adormecido se manifeste por meio da arte, revelando mágoas sentidas e dores recolhidas. Não é só o instrumento que canta: os homens que dele se aproximam também têm muito a dizer.
Mas como a fruta não cai longe do pé, o garoto Washington se revela hábil como realizador. Ao inserir elementos sobrenaturais em sua trama, mesmo diante de um contexto tão naturalista, torna evidente que os fantasmas dos antepassados não podem ser ignorados, por mais distante que tenham sido suas partidas.E assim faz de forma orgânica, sem sustos baratos ou reações imediatas. John David deixa de lado o porte de herói de filmes de ação para se mostrar afiado em um ambiente quase claustrofóbico, urgente em sua demanda e cauteloso em não atropelar sentimentos, por mais que não se permita desistir do intento que até ali o levou. Mas ele tem uma oponente à altura, e Danielle Deadwyler (que deveria ter sido indicada ao Oscar por Till: A Busca por Justiça, 2022, e se for novamente ignorada, outra injustiça se repetirá) é tanto fúria quanto determinação, um mulher que se esforça para não incorrer em fraquezas, ao mesmo tempo em que se agarra no pouco que lhe foi deixado para construir um amanhã também diferente do ontem, exatamente como almeja o irmão – mas não pelos mesmos caminhos. Ele anseia por se mostrar capaz quase como num gesto de vingança. Ela quer se afastar daquilo que foi feito, buscando para si e para os seus o oposto disso. E a paz pode vir do mais inusitado dos encontros. Até mesmo no dedilhar das teclas de marfim.
Ambientado quase que na sua totalidade em apenas um único cenário, Piano de Família permite poucos momentos de respiro ao espectador, que se verá imerso em um turbilhão de descobertas e revelações de variadas intensidades, mas independente disso, com repercussões que não poderão ser desprezadas. A pele marcada pela fúria e pelo desprezo do homem branco ganhou contornos na madeira, e seja como lembrete ou como possibilidade de mudança, o recado está mais do que dado. Os Washington – Denzel, esposa e filhos – possuem aqui não apenas um filme, mas também um manifesto de cor e origem, herança e futuro. O exercício da empatia se mostra necessário, e talvez a medida desse alcance seja fundamental para enxergar o potencial desse discurso. Poderia ser apenas uma disputa entre aqueles que muito se querem. Mas é, após tudo que foi dito e exposto, visões de mundo em colisão. Um meio termo se mostra impossível. E buscar o inimaginável é apenas o começo da transformação.
Filme visto durante a 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2024
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Robledo Milani | 7 |
Francisco Carbone | 3 |
Chico Fireman | 4 |
Daniel Oliveira | 4 |
Ticiano Osorio | 3 |
MÉDIA | 4.2 |
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