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Sinopse

Expulso da floresta, o Pica-Pau encontra um novo lar no Acampamento Woo Hoo. No entanto, o espaço está ameaçado de fechamento. As coisas se complicam quando surge um inimigo e tanto fugido da cadeia: o temível Zeca Urubu.

Crítica

Criado por Walter Lantz, Pica-Pau é um personagem fictício presente no imaginário de gerações. Isso se deve ao enorme sucesso do desenho animado veiculado originalmente nos Estados Unidos entre 1957 e 1972, o mesmo reprisado à exaustão no Brasil em vários canais. Pica-Pau: As Férias no Acampamento é o segundo longa-metragem híbrido dessa figurinha maluca, fruto de uma mescla entre animação e live-action. E a primeira diferença entre o Pica-Pau original e essa versão bastante pasteurizada é a personalidade. Nos acostumamos a acompanhar as aventuras de um sujeitinho carismático que vivia tocando o terror em coadjuvantes como o Leôncio. Geralmente o Pica-Pau era a parte errada, zoava alguém que estava quieto, enchia o saco de um desavisado e bagunçava o coreto. Mesmo assim, torcíamos por ele. Nessa nova aventura cinematográfica, ele começa fazendo jus a essa tradição do porra-louca, ao ponto de ser expulso da floresta onde mora por ser egoísta e não perceber a importância da convivência em sociedade. A missão do nosso protagonista é provar que tem a capacidade de colaborar com os demais para voltar ao lar. Trata-se de uma tarefa de aprendizado que, inevitavelmente, faz do longa-metragem um daquelas experiências com moral da história. O cinema como bula. Não espere complexidade emocional ou apostas formais corajosas, somente uma comédia bem leve.

O público-alvo de Pica-Pau: As Férias no Acampamento é o infantil. Porém, isso não obriga o realizador a tomar sempre o caminho mais fácil para resolver os problemas, tampouco a ser didático. Jonathan A. Rosenbaum faz do Pica-Pau (voz de Eric Bauza) um protagonista em processo de aprendizado e recuperação. O cineasta trata como necessariamente problemática a energia caótica que fascinou jovens e adultos ao longo das décadas. Exilada num acampamento de verão, a ave se vê no meio de uma briga familiar. De um lado, Angie (Mary-Louise Parker), a coordenadora do grupo de crianças veranistas com tendências artísticas. Do outro, seu primo Zane (Josh Lawson), o orientador do time de moleques de férias com tendências militares. Claro que nosso querido destruidor de madeira fica ao lado dos bonzinhos, ajudando como pode no processo de resgate da autoestima deles e, depois de complicar as coisas, vira peça fundamental para o bem prevalecer sobre o mal. Eis que entra em cena Zeca Urubu (voz de Kevin Michael Richardson), o verdadeiro vilão. Foragido da cadeia, o abutre (sim, ele não é um urubu) está bolando um plano maligno para desarticular os concorrentes e encontrar o ouro enterrado na propriedade há décadas dividida em dois. Tendo em vista que estamos assistindo a um filme moralista, do tipo que desenha certos e errados sem nuances, não é difícil saber o que acontece.

Ainda ponderando que estamos falando de um filme feito para crianças, Pica-Pau: As Férias no Acampamento possui algumas mensagens positivas que merecem destaque: a importância da solidariedade; o poder transformador do incentivo; a autoestima como mola propulsora das realizações; a união gerando uma força indestrutível etc. O roteiro assinado por Cory Edwards, Jim Martin e Stephen Mazur atribui importância demais a essas questões de aprendizado, com isso transformando as disputas cartunescas entre Pica-Pau e Zeca Urubu em exceções. O filme ganha fôlego quando mostra as estratégias do vilão animado sendo expostas e arruinadas pela impetuosidade corajosa do mocinho que, gradativamente, age em função de sua preocupação com a equipe. No entanto, a trama gasta um tempo valioso com as problemáticas humanas, nisso sendo entediante. Mary-Louise Parker interpreta uma personagem secundária sem camadas – ela é somente a liderança adulta de bom coração que serve de espelho aos campistas pouco crentes em suas próprias habilidades. Josh Lawson faz de Zane apenas um arremedo de antagonista que não cruza determinadas barreiras de maldade, pois é evidente que a jornada de aprendizado também o afetará. Cabe aos personagens animados o que o filme tem de melhor, ainda que o Pica-Pau seja colocado nessa posição de alguém cuja intensidade precisa ser freada.

Em tempos como o nosso, nos quais há uma maior (e bem-vinda) diligência quanto aos discursos disponíveis às crianças, muitos produtores/cineastas têm apostado na inocência como o signo principal de suas (re)criações. Pica-Pau: As Férias no Acampamento é fruto daquilo que neste texto já foi chamado de pasteurização, pois adequa um personagem de moral questionável aos discursos de correção que valorizam estritamente a existência de criaturas boas e condenam a controvérsia ao calabouço do esquecimento. Nessa nova empreitada cinematográfica, o Pica-Pau é um moleque que precisa se adequar para continuar vivendo em grupo, algo contraditório quando identificamos o discurso aplicado aos humanos: o de que é preciso valorizar a sua essência. Enquanto as crianças do lado bacana do acampamento são incentivadas a utilizar o que têm de melhor, inclusive ganhando provas dificílimas depois de palavras encorajamento, Pica-Pau é convocado a ser diferente, isso se quiser sobressair e ganhar uma medalha. Mesmo contado como uma aventura despretensiosa e de relativo êxito nesse sentido, o filme reinventa esse protagonista deliciosamente imoral dentro de uma reforma cujo intuito é transformá-lo num herói penitente que aprende lições para viver em sociedade. Cadê aquela figura que pode fazer o bem, mas nunca perde a essência sacana? Morreu em algum ponto do desenvolvimento.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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