Crítica
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Sinopse
Praia da Saudade, Piedade. O bar Paraíso do Mar é reconhecido por sua deliciosa moqueca de cação e cerveja sempre gelada. O lugar, construído por Humberto Bezerra há mais de 30 anos, hoje é gerido por sua viúva Dona Carminha e pelo filho mais velho, Omar. O cotidiano deles será abalado com a chegada de Aurélio, um executivo de São Paulo que irá trazer à tona segredos há muito tempo escondidos e que, inusitadamente, os conectam a Sandro, dono de um cinema pornô do outro lado da cidade.
Crítica
Em Piedade, ninguém tem pena do outro. O empresário quer construir, o dono do bar quer seguir com seu negócio, a mãe quer apenas encontrar seu filho, o menino quer protestar, o rapaz busca por afeto, a criança quer apenas entrar no mar. E tudo isso é proibido. O empreendimento não é consciente, o comerciante não tem mais quem servir, a velha senhora já está cansada, o jovem precisa se mascarar, o homem se atira nos braços de quem não o quer, o garoto se refugia no virtual em busca de tudo que não pode ter na realidade. Os segredos se revelam quando menos se espera, e as segundas – ou terceiras – intenções estão sempre a postos para ditar o andar das relações. Em Piedade, o filme, Claudio Assis cria uma delicada e impressionante rede humana para falar de problemas muito urgentes, sem nunca esquecer, no entanto, que o que rege cada (re)ação é o afeto entre essas pessoas. Ou, ainda mais, a falta dele.
Aurélio (Matheus Nachtergaele) tem um objetivo claro: tomar conta da região litorânea da cidade e, com isso, ser responsável pelo sucesso da Petrogreen, a empresa para a qual trabalha. Só que, antes de irem adiante com seus projetos, precisam limpar a sujeira que já causaram na região. E entre os afetados, está Dona Carminha (Fernanda Montenegro), que criou os dois filhos junto com o marido. A família sobreviveu por décadas com o boteco à beira da praia, atendendo turistas, visitantes, locais e curiosos. Fátima (Mariana Ruggiero) foi viver na zona urbana, mas Omar (Irandhir Santos) ficou com a mãe, vivendo com o pé na areia, se esforçando para sobreviver mesmo quando nada mais sobrou. As obras no porto alteraram o ecossistema, e agora o mar está infestado de tubarões. Ninguém mais vai ali para se banhar, se divertir, gozar a vida. Sobrou apenas os que insistiram em resistir, mesmo sem ter mais pelo que lutar.
Do outro lado, em meio à prédios abandonados e ruas sujas, Sandro (Cauã Reymond), o dono de um cinema pornô, respira sexo vinte e quatro horas por dia. Assim o faz para tentar preencher o vazio de nunca ter conhecido a mãe, com saudades do pai que já partiu e do sonho de uma família que nunca teve. Vive apenas com o filho, Marlon (Gabriel Leone), homem feito, mas que ainda se pauta por ilusões. Quer protestar contra os ricos, pichar monumentos e gritar palavras de ordem em vídeos no internet. Os dois poderiam ser irmãos, amantes ou apenas amigos. São tudo o que possuem, um ao outro. E quando a possibilidade de terem mais se apresenta, reagirão de diferentes formas. Um se retrai, o outro se expande. Um se esconde, em tristezas, frustrações e uma vida de amarguras. O outro resgata desejos, ansiando por uma existência que nunca pensou ser possível.
Entre os que enfrentam o trânsito e os que deitam na rede, Aurélio transita. Nachtergaele desfila sua habilidade ao criar um tipo repugnante, mas ainda assim digno de lamento. É ele que irá seduzir Sandro, enfrentar Omar, flertar com Marlon, destruir Dona Carminha. Como um anjo exterminador, chega portando sorrisos e acenando promessas, ao mesmo tempo em que dissimula vontades vis que não conseguirão permanecer submersas por muito tempo. Irandhir mergulha de cabeça num homem que vê tudo que acreditou ser destruído, enquanto que Cauã sofre por carências provocadas pelos atos de quem não mais importa. Os três formam um trio poderoso, mas como lidar quando se tem pela frente o talento superlativo de dona Fernando Montenegro? Com cada um deles ela terá seu momento, levantando compreensão, felicidade, confrontamento, angústia, paciência e saudade do que não foi vivido. Há piedade em todos eles, dos que por ela tanto anseiam até mesmo aos que nada fizeram para merecê-la.
Do caos criativo que o cerca, Claudio Assis faz de Piedade, provavelmente, o seu filme mais maduro. Motivado pelos sentimentos que envolvem cada um destes personagens, evita soluções fáceis e recorre à fortes referências para discutir problemas urgentes, como a selvageria urbana, a posse descontrolada e o imaginado frente ao concreto. No meio de tudo isso, discorre sua narrativa por pessoas que perderam suas identidades e não sabem mais qual passo dar a seguir. Algumas ficarão pelo caminho, outras irão se perder. Às demais, cabe apenas reunir forças para seguir adiante. De um jeito ou de outros, juntos ou separados, mas certos de que família é o que os une, mais do que as palavras que lhes possam ser dirigidas. Sem vencedores nem vencidos, todos perdem, mesmo tendo ganho algo. Afinal, mais do que ter, o que buscam é estar além de onde se encontram, é ser algo que nunca foram, e que não tem certeza se algum dia conseguirão se tornar. Mas pelo qual não cansarão de ir atrás.
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Ótima crítica! Me deu vontade louca de ver o filme.