Crítica

A identidade, um dos temas mais complexos da esfera científica, é foco contínuo de diversos campos do conhecimento. Da filosofia à psicologia, da antropologia à semiótica, em maior ou menor grau, a identidade integra o debate acerca da construção do homem e da sociedade. Neste processo de elaboração cultural, não seria o cinema a deixar de fora de seus discursos uma questão tão importante na estruturação da humanidade. Entre as visões cinematográficas sobre identidade, a questão do gênero é um ponto recorrente, sendo também o centro de Pierrot Lunaire, o novo filme do polêmico Bruce LaBruce.

Ao lidar com o gênero sexual desvinculado da ordem biológica, o cineasta canadense não poderia estar mais confortável na confecção do seu último filme. Inspirado na ópera vanguardista homônima de Arnold Schönberg, composta em 1912 a partir da coleção de poemas de mesmo nome escrita pelo belga Albert Giraud, LaBruce decidiu verter para o cinema a obra que já havia montado no teatro alemão em 2011.

Essa profusão de suportes midiáticos pregressos gerou, em 2014, pelas mãos do inquieto realizador, um filme experimental preto e branco com traços de cinema mudo, ambientação contemporânea, narrativas paralelas e trilha sonora polivalente – misto de operístico dissonante e harmonia eletrônica. Se LaBruce já havia homenageado o cinema silencioso em trechos de longas como Otto (2008), desta vez a celebração do modelo antigo (mesmo que atualizado) é incondicional. A experiência em PB sem falas, na qual a trama se dá pela canção e por letreiros, domina o filme do início ao fim.

A partir destes elementos intrincados, o diretor relata a história de Pierrot (Susanne Sachße), uma mulher não adaptada ao próprio corpo que deseja intensamente adquirir as características físicas do sexo oposto. Pierrot não apenas se veste como homem, mas anseia profundamente ter um pênis. Apaixonado por Colombine (Maria Ivanenko), garota que desconhece a condição do namorado como mulher, o protagonista acaba desmascarado pelo pai da garota, que instala uma crise entre o casal. Em um surto psicótico que tem origem não apenas na questão da identidade de gênero, mas também na rejeição social e emocional, Pierrot toma uma medida drástica para exibir a pai e filha sua potencialidade masculina.

A ousadia estética de LaBruce, totalmente desvinculada de concessões comerciais, aponta para a versatilidade criativa do autor, que nos últimos anos vem se superando em soluções temáticas, visuais e de linguagem. Exemplo claro é a narrativa dupla de Pierrot Lunaire, baseada na ópera e no texto inscrito em telas de filme mudo, que juntos compõem uma trama de desejo, amor, perda e transgressão.

A intensidade do enredo ganha tons ainda mais dramáticos com o canto interpretado em alemão e fundamentado em spoken word, na qual a letra é mais falada do que cantada, porém sempre em sentido trágico. A poética do longa também toma forma com a constante fusão de imagens e com a inserção de cenas filmadas previamente durante uma das apresentações da obra nos palcos, sugerindo sequências alternativas e complementares sobre a história do casal.

Pierrot Lunaire rendeu a Bruce LaBruce o prêmio especial do júri no Teddy Awards do festival de Berlim deste ano, quando foi lançado, e indica a boa fase de um dos cineastas mais flexíveis e radicais da atualidade.

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é jornalista, doutorando em Comunicação e Informação. Pesquisador de cinema, semiótica da cultura e imaginário antropológico, atuou no Grupo RBS, no Portal Terra e na Editora Abril. É integrante da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul.
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