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Sinopse

Um homem solitário vive no deserto do Oregon apenas na companhia de sua porca de estimação. Mas, quando a suína é sequestrada, ele precisa empreender uma verdadeira jornada para recuperar a sua melhor amiga.

Crítica

É tentador comparar Pig: A Vingança com os ótimos filmes da saga John Wick, uma vez que realmente há semelhanças importantes a serem ressaltadas. Tanto no enredo estrelado por Nicolas Cage quanto nos protagonizados por Keanu Reeves, temos um personagem principal ensimesmado, afastado de todos em virtude de algo que ficaremos sabendo mais adiante; ambos carregam uma dor constante ocasionada pela morte de suas esposas e, de certa forma, aliviam esse sofrimento na convivência com os animais de estimação (respectivamente, uma porca e um cachorro); o sequestro ou a morte desse bichinho companheiro faz com que tais homens saiam de seus autoexílios e novamente deem as caras numa sociedade secreta que mais parece um submundo exclusivo; basta a menção de seus nomes para que as demais pessoas estremeçam, sobretudo aquelas que têm plena compreensão do quê suas antigas reputações representam. Posto isso, os pontos de contato acabam ficando realmente por aí. No que diz respeito à essência, o longa-metragem dirigido por Michael Sarnoski vai trabalhar com questões implícitas muito diferentes daquelas que balizam as produções com o selo John Wick de qualidade. Embora o subtítulo brasileiro “A Vingança” sugira que Rob (Nicolas Cage) está prestes a se transformar num demônio capaz de cobrar em sangue uma dívida de honra, isso em nenhum momento se efetiva. Aliás, é sintomático que na cena no estilo “Clube da Luta” ele dê a cara a tapa e apanhe.

Pig: A Vingança estabelece, constantemente, uma relação entre as aparência e as essências. Ninguém daria muito por um sujeito como Rob, morador de uma cabana isolada na floresta, um ermitão de poucas palavras que disponibiliza afeto apenas à porca – que, inclusive, acaba se parecendo com ele. Esse animal que grudou no imaginário coletivo como sendo nojento, pois dado a chafurdar na lama e próximo do desprezível pelo aspecto sujo, auxilia o companheiro a localizar sofisticadas trufas – esse integrante nobre da família dos fungos que possui um valor astronômico, figurinha carimbada nos mais respeitáveis roteiros de alta gastronomia. O choque entre essas noções diametralmente opostas (porca suja/homem desleixado a serviço de um tesouro refinado) também está presente em outras dinâmicas do filme. Michael Sarnoski sublinha esse embate quando insere o carro extravagante/esportivo de um visitante no plano emoldurado pela casa humilde do protagonista. À medida que a trama avança, fica ainda mais evidente/relevante a transformação do abismo num diálogo revelador entre opostos ou, mais precisamente, entre camadas praticamente antagônicas. Como todo personagem que esconde as chagas de seu passado sob uma membrana espessa da autopreservação, Rob vai se deixando revelar aos poucos, mas sem abandonar o pesar. O sequestro de sua porca funciona como uma desculpa, quase um McGuffin para que esse homem se veja obrigado a reintegrar-se à sociedade renegada.

Falar em McGuffin é aludir ao dispositivo narrativo assim batizado por Alfred Hitchcock, cuja função é fazer a trama avançar, não tendo muito valor em si mesmo. Claro que é relevante o carinho motivador de Rob pela companheira suína, mas o que verdadeiramente importa em Pig: A Vingança é o retorno pesaroso de um rei exilado que antes preferiu se afastar do império. Os motivos desse abandono do cenário no qual era tratado como sumidade incontestável são sugeridos na conversa com o chef de cozinha que no passado foi demitido por deixar o macarrão cozinhar demais. Rob fala de uma discrepância entre os mundos das aparências e o das essências, defendendo que não vale a pena fazer sacrifícios para adequar-se às expectativas dos outros. Isso também se refere à jornada simultânea do escudeiro desse Dom Quixote perambulante pelo lado sombrio e superficial da gastronomia. Amir (Alex Wolff) é o jovem que escuta podcasts sobre música clássica para se encaixar na imagem de sucesso que o pai valida. É uma pena que o cineasta não trabalhe mais detalhadamente as relações intestinas desse submundo gourmet revelado pela presença do personagem vivido por Nicolas Cage. Ele somente assinala a rinha de funcionários de restaurantes e os segredos escusos que permanecem escondidos da clientela chique que está disposta a pagar fortunas por pratos que lhe faça parecer requintada.

No entanto, mesmo que perca algumas oportunidades para mergulhar nesse manancial de hipocrisias, falsidades e desejos de acúmulo de poder, o cineasta Michael Sarnoski cria uma experiência muito interessante e às vezes até hipnótica no seu primeiro longa-metragem. Evidentemente, o filme não teria o mesmo impacto dramático se não fosse a excelente interpretação de Nicolas Cage como o fantasma cuja casca grosseira destoa do conteúdo refinado. Repetidamente ridicularizado por seus exageros, caras e bocas, Cage parece realmente sobressair quando seus personagens são figuras que internalizam até o limite do aconselhável as dores, os desejos e os empecilhos. Curiosamente, quando precisa carregar nas tintas, o ator constantemente acaba metendo os pés pelas mãos – a não ser em Coração Selvagem (1991), no qual David Lynch soube canalizar muito bem essa sua extravagância. Mas, ao construir pessoas com uma angústia que não é extravasada, ele frequentemente apresenta desempenhos intensos, densos e adequados, como nesse filme. O fato de Rob nunca lavar o sangue do rosto, deixando bem visíveis as marcas da agressão sofrida, é apenas um dos indícios que sugerem a iminência de um descontrole que pode acabar em morte. E a vingança do homem injustiçado até chega. Não numa carnificina, mas na evocação da memória que desconcerta o adversário. Além disso, o amor que prevalece sobre a função da porca arremata muito bem essa jornada afetiva de quem utiliza as aparências como uma camuflagem protetora, ao contrário de John Wick que se expressa e se revela pela violência.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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