Crítica
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Sinopse
Um boneco de madeira que deseja ser um garoto de verdade. Pinóquio aprende gradativamente sobre o mundo, na base da tentativa e do erro. A coragem inerente às crianças o fará ir cada vez mais na direção de seus sonhos.
Crítica
A considerável surpresa diante deste projeto se encontra menos na produção do que na premissa. O conceito popular de Pinóquio, o boneco mentiroso que sonha em se tornar um garoto de verdade, é praticamente esquecido no novo projeto. Em uma cena específica, o protagonista mente e seu nariz cresce, porém o fato não traz repercussões para o resto da trama – e mesmo quando ele profere algumas verdades, o nariz continua a crescer. Desde que o boneco adquire vida, quase nada o diferencia de um ser humano comum: ele corre, fala, estuda, transita entre as demais crianças sem qualquer tratamento distinto por parte da sociedade. Assim, o profundo desejo de se tornar um garoto “de verdade” se perde: Pinóquio constitui um garoto tão antropomórfico que se assemelha a um menino vestido para alguma festa à fantasia – no caso, com uma pesada maquiagem de madeira em efeitos digitais.
O trabalho de computação pode criar certa dificuldade de adentrar a trama. O caso recente de Cats (2019) despertou boas discussões sobre os limites da intervenção digital, mas há tempos que a indústria busca efeitos cada vez mais realistas, de modo que o patamar da rejeição seria atingido uma hora ou outra. A produção italiana aposta em efeitos ostensivos, buscando ao máximo se aproximar da imagem “real” de um boneco de madeira humano – o que constitui, por si próprio, uma utopia e um paradoxo. Seria tempo de algum teórico investigar o fetiche contemporâneo pela fantasia que se esforça em não parecer fantástica. Como se desenvolveu o fascínio pela dificuldade técnica (a busca pela fantasia que se confunda com o real) enquanto valor cinematográfico? Em que momento passamos da virtude do artifício e do lúdico àquela do trompe l’oeil? Pinocchio sofre tantos acréscimos digitais que, ironicamente, soa muito menos fantástico do que os antigos desenhos feitos à mão. Uma alegoria tão claramente mágica quanto a marionete de madeira adquirindo vida precisou se ajustar ao imperativo contemporâneo do fotorrealismo.
Uma vez acostumado com a estética particular, o espectador se depara com a diluição da especificidade deste conto numa jornada de aventuras mais ampla: uma vez separado de seu criador, o boneco encontrará animais falantes, campos de trabalho forçado, gigantescos animais marinhos, crianças transformadas em animais de carga, fadas envelhecendo do dia para a noite, enforcamentos e encontros com assassinos. O roteiro transborda de ideias sobrepostas umas sobre as outras, como se estivesse indeciso sobre qual caminho adotar. O resultado beira a aleatoriedade: dentro deste universo sem regras precisas, tudo poderia acontecer, e quase tudo de fato acontece. A cada conclusão de um conflito, o boneco cai em uma nova armadilha, apenas para ser superada e dar origem a mais uma, e assim por diante. A certa altura, o projeto precisa que Pinóquio encerre sua epopeia, tratando de lhe fornecer abruptamente a recompensa desejada. Ainda assim, passado o clímax, o diretor Matteo Garrone encontra espaço para um conflito novo. O filme seria beneficiado por uma edição com maior poder de concisão e coesão.
Entretanto, a produção se revela competente na tarefa de combinar personagens fantásticos com cenários verossímeis, que convivem lado a lado sem grandes sobressaltos. Roberto Benigni, que já havia dirigido sua própria versão de Pinóquio (2002), interpreta muito bem Gepetto, contendo sua gestualidade tão expressiva em favor de um tipo mais contido, que cabe bem ao solitário marceneiro. Alguns personagens recorrentes – a fada, a lesma, o colega de escola – conseguem se desenvolver a contento dentro deste universo desprovido de balizas. A ingenuidade da trama bastante infantil se combina com aspectos um pouco mais sombrios a respeito da exploração humana e dos perigos do mundo. Enquanto as produções juvenis contemporâneas buscam disfarçar suas mensagens através de aventuras velozes e coloridas, Pinocchio sustenta uma aparência melancólica, através da qual os personagens literalmente dizem ao garoto como agir: não mentir, ir à escola, obedecer aos pais, não confiar em estranhos.
Deste modo, a produção de efeitos avançados e escopo amplo serve a defender valores clássicos de amizade, companheirismo, coragem etc. O protagonista, sem motivo aparente, se sacrifica por outra marionete que mal conhece, porque o roteiro julgou conveniente lhe imputar um altruísmo exemplar. “Mas como é possível?”, pergunta o garoto em determinado momento, diante das incríveis peripécias à sua frente. “É possível!”, escuta como resposta. Simples assim. O filme italiano resgata a fé na ficção, a crença no improvável como pacto inerente à experiência cinematográfica, ao mesmo tempo em que nos pede para acreditar num boneco incrivelmente humano e profundamente modificado digitalmente. Tempos estranhos os nossos, quando a magia se esforça tanto para parecer real, e o real deseja tanto obter um efeito mágico. Aumentamos o escopo da produção, multiplicamos as técnicas e os recursos para atingir uma simplicidade de valores típica das histórias familiares transmitidas oralmente de pai para filho.
Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Bruno Carmelo | 6 |
Robledo Milani | 6 |
Marcio Sallem | 6 |
Francisco Carbone | 8 |
Ailton Monteiro | 5 |
Alysson Oliveira | 7 |
Chico Fireman | 6 |
MÉDIA | 6.3 |
O conto do boneco de madeira que sonhava em ser um menino de verdade ganha seu turno na recente onda Live Actions. O rigor técnico talvez seja um dos pontos altos dessa recente produção. O filme, como será melhor observado adiante, opta pelas diretrizes da jornada melancólica. Para esse fim, fotografia e design de produção têm execuções admiráveis. E, apesar de a computação gráfica de alto nível aproximar-se cada vez mais de um padrão esperado do que de um diferencial, a recriação do boneco de madeira é competente. Detalhes como o ranger da madeira que acompanha as movimentações do personagem bem como os vícios na dicção são cativantes. Os caminhos possíveis para recontar um clássico são inúmeros. A proposta apresentada em 2021 possibilita o desenho de algumas alternativas: a primeira poderia ser a adoção do tom fabular numa combinação não necessariamente coesa de uma multiplicidade de episódios, o elo de coesão ficaria a cargo da magia encantadora. Ou ainda, seguir linhas mais dramáticas onde a sucessão de episódios densos e fantásticos doutrinam, numa lógica linear fluida, o personagem que aventura-se e aprende às custas da tentativa e erro. O que soaria incongruente, e justamente a escolha feita nessa versão, é a combinação da fragmentação episódica aleatória com uma forte demanda melancólica: ou seja, a combinação desarmônica de elementos das duas possibilidades mencionadas. O resultado é a apatia da positividade que poderia decorrer da interação com personagens como o grilo, fada ou até mesmo o pai. Isso não seria, a princípio, um erro. O olhar sombrio é uma via possível, mas deveria ser acompanhado de uma narrativa dramaticamente amarrada, não podendo portanto se valer da irreverência conciliadora de fartos episódios fantásticos. O que se vê são passagens que fracionam o drama com a permissividade da magia, mas que não correspondem à seriedade pressuposta para envelopar o clássico. Não empolgou.