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Sinopse

Alfredo da Rocha Vianna Filho, mais conhecido como Pixinguinha, foi um dos grandes nomes da música popular brasileira no século 20. Esse menino negro e prodigioso de família humilde alcançou um reconhecimento sem igual.

Crítica

A cinebiografia é um terreno repleto de armadilhas traiçoeiras. Pressupondo que alguém se debruce sobre uma trajetória por admirá-la, como evitar a canonização? Ao mesmo tempo, será que a simples menção de arestas torna o resultado menos parcial e hagiográfico? Pixinguinha: Um Homem Carinhoso tem como protagonista um dos baluartes da nossa música, uma figura incontornável quando o assunto é a cultura popular brasileira. Compositor de obras-primas consagradas pelo tempo, tais como “Carinhoso”, “Rosa”, “Urubu Malandro” e “Taí”, entre tantas outras canções que foram cristalizadas no imaginário da nação, Pixinguinha é observado no filme dirigido por Denise Saraceni e Allan Fiterman como um sujeito essencialmente boa praça. E os realizadores adotam uma estratégia infelizmente comum às cinebiografias: a tentativa de cobrir um extenso período de tempo, basicamente indo da infância à morte. Em vez de oferecer um recorte específico, de situar a personalidade dentro de circunstâncias indicativas/sintomáticas – a expectativa para um show, traços do âmbito doméstico, a imagem que dele tinham, etc. –, Denise e Allan preferem a convenção do “nasceu assim, morreu assim”. Portanto, vemos Pixinguinha desde a meninice numa casa suburbana repleta de carinho e musicalidade. E Seu Jorge, intérprete do protagonista a partir da vida adulta, narra tudo como testemunha.

Pixinguinha: Um Homem Carinhoso segue o itinerário padrão das cinebiografias convencionais. Em que pese as particularidades da vida de Pixinguinha, vemos seu reconhecimento precoce, a ascensão meteórica rumo ao estrelato, o sucesso, os percalços profissionais e emocionais, a ameaça da obsolescência praticamente fatal ao artista, o entusiasmado ressurgimento das cinzas e o dramático ponto final. Mas, para além da previsibilidade gerada pelo uso do mesmo esqueleto de tantos outras produções biográficas, existe de outro problema: a inocência. E ela é resultado de uma idealização. Por exemplo, quando Pixinguinha sobressai pela primeira vez no palco. A cena dele saindo do roteiro ao ser inspirado pelas imagens do filme mudo ao qual acompanhava musicalmente poderia ser linda, por tudo o que está evidentemente envolvido nela (inspiração, arte, elevação, traços de sublime). Porém, a forma como ela é executada deixa no ar um gosto de romantismo antinatural. O menino simplesmente se levanta, começa a fazer o belíssimo solo e os demais músicos o aplaudem efusivamente, como se tocados milagrosamente por uma epifania. Sem nenhuma nuance, como se aquilo fizesse parte de um milagre ganhando corpo numa sociedade racista. Era assim que o narrador se lembrava do episódio? Pode ser, mas essa explicação não dá aos encenadores um salvo-conduto para qualquer facilidade, principalmente porque o filme não assume um tom de fábula e/ou invenção que possa descolá-lo da realidade.

Há várias questões negligenciadas em Pixinguinha: Um Homem Carinhoso. Uma das principais é a negritude de Pixinguinha e o racismo da elite carioca da época (anos 1910). Os realizadores ameaçam frequentemente trazer esse tópico ao primeiro plano, mas preferem abortar a controvérsia antes dela reivindicar o protagonismo. Como quando o músico, na companhia de outros homens negros num bar, sofre injúrias raciais. Tudo acaba numa conciliação forçada, como se a tréplica bem dada fosse suficiente para desarmar um espírito preconceituoso que, logo depois, confraterniza alegremente com quem antes agrediu. Some-se a isso os problemas da direção de arte assinada por Marcos Flaksman. Talvez por uma restrição orçamentária, quiçá por outros motivos que escapem aos olhos do crítico, os cenários e os figurinos soam excessivamente falsos. Vide a cena há pouco mencionada, na qual os rapazes utilizam vestimentas que os sugerem como trabalhadores braçais. Mas, as roupas são pouco puídas, como se tivessem saído recentemente da alfaiataria. Isso aparece também na apresentação dos grupo Batutas em Paris. A Cidade Luz é reproduzida em estúdio, num salão que não inspira a crença no truque que está sendo proposto como alternativa à filmagem in loco. Parece que estamos diante de uma produção televisiva que contou com uma boa pesquisa de época, mas que não foi bem-sucedida ao tentar tornar esse universo absolutamente crível. E o artificialismo, sempre ele, aparece em outros vários departamentos, se impondo como um efeito colateral involuntário.

Denise Saraceni e Allan Fiterman empilham episódios rapidamente, sem dar tempo para que algo se assente ou decante na experiência quase monocórdica ofertada ao espectador. Não dá para dizer, por exemplo, que Pixinguinha: Um Homem Carinhoso esconda todos os conflitos. Vemos Pixinguinha sendo irresponsável financeiramente, exercendo o seu poder patriarcal para abreviar a carreira da esposa, bebendo além da conta, colocando o futuro da família a perder, entre outras coisas. No entanto, como a idealização romântica acaba prevalecendo às nuances da realidade, todos esses senões são sufocados até se tornarem notas de rodapé insignificantes. O Pixinguinha de Seu Jorge é um homem notável, admirável, capaz de sentar à mesa com seus agressores e cujo trânsito pela alta sociedade depende única e exclusivamente de seu talento. Já Beti (Taís Araújo), a companheira resistente de toda uma vida, desempenha a função que o cinema (e a vida) contemporâneo já não mais comporta: a da mulher que vive em função do marido. Alguns dirão: “mas na verdade foi isso mesmo o que aconteceu”. E claro que ninguém está exigindo a perversão dos fatos. Mas, talvez um olhar menos complacente ao patriarca Pixinguinha, mais benevolente à abnegada Beti, fosse capaz de ir além de um velado elogio à resignação da esposa em função da genialidade do amor de sua vida. Por fim, a inserção de trechos documentais (fotos, filmagens, etc.) parece um tapa-buraco, pois não tem qualquer efeito prático. O que pesa aqui é, principalmente, a ingenuidade da abordagem de uma figura emérita e tão brilhante.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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