Crítica
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Sinopse
Dan ama sua vida suburbana de marido dedicado, pai de três filhos e vendedor de carros. Mas, ninguém imagina que no passado esse sujeito pacato era um assassino a serviço do governo dos Estados Unidos.
Crítica
Ao longo da história do cinema norte-americano, há vários personagens que se encaixam na seguinte descrição: sujeito pacato, pai de família exemplar e de cotidiano comum, acaba revelando que foi agente secreto (ou assassino profissional) antes de decidir aquietar e ser mais um na multidão. Pensando nos últimos 20 anos, provavelmente a melhor produção que utilizou esse modelo foi Marcas da Violência (2005), do cineasta David Cronenberg. Mais recentemente (e com menos qualidade), Anônimo (2021) partiu da premissa que também é o ponto de arranque de Plano em Família. O protagonista dessa vez é Dan (Mark Wahlberg), sossegado vendedor de veículos usados e adorado chefe familiar apegado a uma rotina totalmente pré-programada. Seus filhos sequer imaginam que a sua aversão por redes sociais tem a ver com o receio de que mecanismos de reconhecimento facial o identifiquem e revelem que no passado ele foi um mercenário altamente treinado para cumprir missões praticamente impossíveis e empilhar cadáveres em nome do governo dos Estados Unidos. Mas, calma, o tom do longa-metragem dirigido por Simon Cellan Jones é bem mais leve do que o visto nas produções citadas como referências. Estamos diante de uma comédia daquelas “para toda a família”, pouco interessada nas consequências da mentira ou em qualquer coisa que desvie o foco do escapismo.
Como o roteiro assinado por David Coggeshall claramente não está disposto a mergulhar nas complexidades da situação, a isso preferindo uma aventura leve em que os obstáculos serão removidos em prol da harmonia familiar, é indicado voltarmos nossas atenções à construção ideológica dessa história como tantas antes vistas, partindo de uma relação com a Saga James Bond. Egresso dos livros de Ian Fleming, o agente secreto mais conhecido e importante dos cinemas serviu durante décadas como ideal de masculinidade. Bonito, com acesso ao dinheiro do governo britânico, gozando de viagens constantes ao redor do mundo, munido de traquitanas tecnológicas em missões excitantes, dirigindo carros cobiçados, se envolvendo amorosamente com diversas beldades e titular de licença oficial para matar. Com isso tudo, 007 se tornou uma espécie de símbolo dos anseios masculinos, claro, tendo em vista as construções sociais do que se espera que os homens desejem ter/ser. Pois bem, Dan deixou tudo isso para trás em função de uma família super tradicional, com filhos ligeiramente rebeldes (mas no fundo obedientes) e uma esposa que o segue com raríssimas reclamações (no fim das contas, por mais que resista, ela sempre dança conforme a sua música). É como se o filme nos dissesse: “boa mesmo é a vida suburbana com uma esposa e uma prole adequadas, nada de aventuras, perigos e hedonismo”.
Diferentemente de Marcas da Violência, no qual a revelação da verdade acontece logo, dando tempo à elaboração dos efeitos da mentira, em Plano em Família o roteiro trata de segurar a descoberta do passado assassino de Dan para um momento em que a explosão da violência impeça reflexões, especialmente, àqueles que foram enganados a vida toda. Sendo assim, o cineasta Simon Cellan Jones precisa elaborar as estratégias do protagonista para continuar engambelando a família, mesmo quando todos colocam o pé na estrada em fuga com homicidas malvados em seu encalço. Não há muita criatividade nessa escapada, mas uma progressão meio burocrática repleta de coincidências providenciais e acasos que nem ajudam a dar credibilidade à tão falada habilidade praticamente extra-humana de Dan. Porém, voltando ao aspecto ideológico dessa produção que faz uma força danada para dourar a família tradicional, quando Jessica (Michelle Monaghan), a esposa, fica sabendo de tudo, não dura muito a sua emancipação do marido que lhe engambelou desde o primeiro encontro. Capturada pelo mal, ela (e os filhos) precisarão das habilidades assassinas (os fins justificando os meios) para que a unidade familiar não seja desmantelada. Tanto que para esse círculo se fechar por completo, quem sabe para o casal voltar a operar na mesma frequência, será preciso que ela cruze os limiares da civilidade.
Como Dan não pode apagar seu passado com quase 50 mortes nas costas, é Jessica quem precisa se tornar uma assassina para eles continuarem coexistindo – claro, a desculpa é a “necessidade” imposta pelo perigo que os dois filhos deles correm. Além disso, Jessica ganha uma rival para, esquematicamente, também lutar por seu homem, como se ainda precisasse provar-se digna de estar ao lado do protagonista (nos termos dele, claro). Então, mesmo que Plano em Família seja aparentemente mais um filme inofensivo sobre arestas que precisam ser aparadas para garantir a manutenção de uma felicidade ameaçada, na verdade ele carrega mais do que alardeia do ponto de vista do seu discurso. É bom sempre reiterar: não existem filmes inocentes, até mesmo a mais escapista das histórias se constitui a partir de morais que, por sua vez, são alimentadas pelas concepções ideológicas dos autores. Certamente, aqui os criadores contam com a falta de curiosidade da parcela do público que não vai além de uma percepção superficial e/ou com absorção rápida da fração da plateia que concorda com os ideais camuflados na aventura ligeira para consumo indiscriminado. Se desenvolvimento da trama fosse mais engenhoso nessa sua pseudo-pureza despretensiosa, o resultado poderia ser menos maldisfarçado. Mas, Simon Cellan Jones não consegue ocultar a banalidade da trama e a base conservadora dos seus enunciados.
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Pelo visto o crítico gosta de levar para o lado liberal. Como ele mesmo diz... nada é por a caso.