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Crítica
Vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza 2023, Pobres Criaturas começa com um gesto supostamente definitivo: o suicídio da mulher que se atira de uma ponte em Londres, na Inglaterra. No entanto, o cadáver é manipulado para a morta renascer como Bella Baxter (Emma Stone), versão feminina do Monstro de Frankenstein. Seu “pai” é Godwin (Willem Dafoe), a quem sintomaticamente chama de God (Deus, em inglês). Baseado num livro de Alasdair Gray, o mais novo longa-metragem do cineasta grego Yorgos Lanthimos chama a atenção inicialmente pela suntuosidade visual, resultado dos figurinos lindíssimos e da direção de arte que cria uma espécie de passado futurista/gótico em cenários expressivamente artificiais. Depois da morte, vêm a ressurreição e os aprendizados da protagonista fotografados em preto e branco, com uma inversão provocativa entre criador e criatura se tivermos Frankenstein de Mary Shelley como norte. Desta vez, o médico é a figura deformada, o sujeito de quem todos têm medo, enquanto a sua criatura é uma mulher de beleza cativante e comportamento sexualmente voraz. Esse deus criador que não acredita na alma, porque não se submete a divindades, é um pai entusiasta do conhecimento, alguém que acompanha com particular interesse o desenvolvimento do cérebro infantil utilizado para reanimar o seu experimento. E o saber é emancipatório, como veremos.
Há camadas filosófico-existencialistas nas quais podemos mergulhar em Pobres Criaturas. Existe a relação complexa criador/criatura que se desdobra numa conexão paternal/filial, isso sem perder de vista que a presença de Bella também serve aos preceitos puramente científicos de God. Mas, em determinado momento, justamente quando a protagonista reivindica sair pelo mundo à procura de mais conhecimento, ele se recrimina por ter nutrido sentimentos paternais por ela e deixado o seu senso prático ser contaminado. A casa de God é um carnaval de criações grotescas, vide a presença do porco-galinha e das outras quimeras resultantes de cruzamentos visando proporcionar o surgimento de novas espécies. Nenhum dos híbridos tem qualquer função prática (produzir mais carne ou leite, por exemplo), o que denota o mais puro ímpeto investigativo nessas fusões bizarras e sem (claras) intenções capitalistas. Max (Ramy Youssef), assistente de God, se apaixona pela jovem que perambula com um andar trôpego fazendo perguntas cada vez mais pertinentes. Ele é a única figura masculina do filme que não representa alguma sombra violenta a Bella, uma espécie de herói romântico que tem seus rompantes de indignação, mas que no fim das contas aparece como um parceiro adequado a essa mulher que optou por se matar, foi reanimada e teve a sua existência ressignificada por uma nova educação.
Quando Bella finalmente ganha o mundo, Pobres Criaturas explode em cores, deixando o preto e branco de lado. E isso acontece porque a partir da saída de casa o que temos é um percurso educativo capaz de forjar uma nova mulher. O dado da ficção científica permite a ressureição com impulsos elétricos e um cérebro transplantado (às custas do assassinato de um bebê, diga-se de passagem). Mas, o que faz Bella deixar de ser Victoria, a cruel esposa de militar que não aguentou o fardo de existir e gerar em seu ventre uma nova vida, é menos o procedimento e mais as novas vivências e os conhecimentos adquiridos que alargam a sua perspectiva. É como se Bella fosse resetada e ganhasse a chance de recomeçar do zero. Para transformar o processo de emancipação numa epopeia grandiosa, Yorgos Lanthimos aposta novamente na construção de um visual de encher os olhos, na saturação de elementos cênicos, no excesso bem calculado que se apresenta aos olhos curiosos da protagonista como algo fascinante. Marca registrada do recente cinema desse controverso realizador grego, a utilização das lentes grandes angulares, que distorcem as laterais da imagem dando a sensação de forçar o mundo para ele caber na restrição dos enquadramentos, aqui são mais presentes na metade inicial do filme. Às vezes soam como capricho desnecessário, noutras como artifício totalmente pertinente àquilo tudo.
Num ano em que Barbie (2023) arrasou as bilheterias com sua fábula feminista, Pobres Criaturas também apresenta como protagonista uma mulher aos poucos enriquecida por experiências e pelo conhecimento rumo à emancipação. Emma Stone se credencia a ser uma das estrelas da próxima temporada de premiações com a sua interpretação brilhante de Bella. Do ponto de vista físico, a atriz compõe uma personagem que vai gradativamente reaprendendo a caminhar e a se expressar corporalmente (inclusive se valendo bastante do sexo para isso). Psicologicamente e emocionalmente falando, Bella é uma figura que aprende aos poucos a polidez da sociedade, não sem antes fascinar e estarrecer em semelhante medida seus interlocutores com perguntas desconcertantes e comportamentos sem o filtro das regras coletivas. Diante do ciúme agressivo de Duncan (Mark Ruffalo), ricaço com quem escapa numa aventura de luxos e sexo pelo mundo, ela pergunta inocentemente: “então quer dizer que você me ama, mas está disposto a me matar se eu me deitar com outro?”. Essa ingenuidade da mente em desenvolvimento permite o encaixe de questionamentos como esse, que expõem não apenas a verdadeira natureza do suposto “homem de espírito livre”, mas também a sordidez da sociedade construída em torno das demandas masculinas. À medida que Bella acumula saberes e cresce individualmente, o filme intensifica os exemplos que a iluminam pela via do empoderamento e do senso de coletividade.
Um sujeito malandro que conquista uma menina inocente como troféu em viagens nababescas. Duncan é o bobo da corte de Pobres Criaturas, muito bem interpretado nessa chave por Mark Ruffalo. Ele personifica o discurso ultrapassado do homem, logo destruído pela nova mulher que consegue se desvencilhar de certos estimas e dogmas a fim de forjar uma personalidade baseada em conhecimentos, experiências e convicções. Isso enquanto Pobres Criaturas dá uma guinada ao humor, deixando a sisudez do preto e branco para trás e se transformando numa colorida fábula satírica e mordaz. E essa mudança acompanha a transformação pela qual Bella passa. A protagonista deixa de ser a cativa no castelo e passa a exercer a sua liberdade de modo quase total. Como tinha feito em vários de seus filmes anteriores, Yorgos Lanthimos não parece disposto a suavizar, pelo contrário, vide as cenas de corpos eviscerados, a quantidade (quase exagerada) de relações sexuais de Bella e os relatos de God sobre as mutilações de seu corpo por um pai cientista. Curiosamente, até certas atrocidades viram chistes no filme, especialmente pelo acúmulo de absurdos – as falas de God se transformam em alívios cômicos macabros. Lanthimos reitera seu apreço pelo trânsito entre o grotesco e o ridículo, movimento aqui a serviço da jornada de libertação movida por conhecimento e consciência (de classe e gênero).
Filme visto durante a 25º Festival do Rio (2023)
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