float(296) float(92) float(3.2)

Crítica


2

Leitores


92 votos 6.4

Onde Assistir

Sinopse

Mary Morrison é uma famosa escritora de suspense. Quando se prepara para embarcar numa nova obra, contrata uma babá para ajudar nos cuidados com as crianças. No entanto, a trama sinistra do livro começa a se misturar a realidade. Mary seria vítima de uma perigosa intrusa, ou estaria imaginando as ameaças? Conforme o livro se desenvolve, a vida dos familiares é colocada em risco.

Crítica

Este suspense possui a curiosa mania de antecipar seus próximos passos. No início, apesar da vida tranquila da escritora Mary Morrison (Kristin Davis), a trilha sonora sinistra nos alerta que algo sairá muito errado. Em meio aos dias ociosos, a melhor amiga sugere à heroína a contratação urgente de uma babá para colocar a rotina em ordem, embora os cuidados com os filhos não constituam um problema até então. Quando a candidata a babá Grace (Greer Grammer) entra pela porta, ela faz uma cara de psicopata à câmera. Antes mesmo de conhecer o marido da heroína, Grace motiva especulações sobre o poder de sedução da jovem. Numa de suas primeiras frases, a garota comportada até demais afirma: “Eu sou um pouco obsessiva”. Adiante, Mary confessa não uma nem duas, mas quatro vezes, a incapacidade de distinguir o real do imaginário quando prepara um novo livro. Ora, como isso se manifestou anteriormente no processo de criação de tantas obras famosas? O roteiro ignora esta questão. Para a história, interessa apenas colocar a escritora e a babá em rota de colisão, avisando ao espectador exatamente aquilo que encontrará: tensão sexual e perigo de morte. Adivinha? Grace se tornará “um pouco obsessiva” adiante, e a heroína será incapaz de separar a criação da ficção. Pelo menos fomos avisados.

A diretora e roteirista Anna Elizabeth James tem a mão pesadíssima para a condução das cenas. Talvez ela tema que suas simbologias não sejam claras o bastante, ou duvide da capacidade de compreensão do espectador. De qualquer modo, ressalta suas intenções ao limite do absurdo: o erotismo entre as duas mulheres se confirma por uma sucessão vertiginosa de fusões, sobreposições, câmeras lentas e imagens deslizando por todos os lados, sem saber onde parar. A escritora bebe uísque e fuma charutos o dia inteiro (é preciso lhe colocar um objeto fálico na boca, claro), enquanto a casta funcionária mostra os seios, segura facas de maneira sensual e acidentalmente entra no quarto da patroa sem bater na porta. Por Trás da Inocência (2021) se torna um herdeiro direto da estética soft porn da televisão aberta (alô, Emmanuelle) e do erotismo de banca de jornal, tipo considerado “baixa literatura” por suas simplicidades e exageros. Ora, bons diretores conseguem extrair maravilhas de um material semelhante (vide François Ozon). Já a diretora encara esta premissa como se tivesse uma obra-prima em mãos, evitando assumir a óbvia vertente trash. Em consequência, a imagem é tomada por sobreposições do sexo oral feminino a um buquê de rosas, mulheres passando protetor solar nas costas uma da outra (com direito a gemidos) e carícias nos seios dentro do provador de uma loja.

Kristin Davis representa uma escolha improvável para o papel principal. A atriz utilizava sua expressividade exagerada com finalidade cômica em Sex and the City, atingindo um resultado pertinente à série. Entretanto, dentro de um gênero dependente de ambiguidades, a composição da protagonista beira o constrangimento. Ela acorda sorrindo para o teto e interpreta a gentileza sem variações. Em seguida, demonstra igual desconforto para segurar charutos e participar de cenas de sexo. Medo, desejo sexual, raiva e tristeza são interpretados em modo próximo da caricatura. Sabe as brincadeiras em que se pede a algum amador para fazer “cara de tristeza”, “cara de felicidade” e assim por diante? O resultado é semelhante. Greer Grammer esforça-se para corresponder a um fetiche ambulante, sendo uma garota profundamente casta num momento, e radicalmente perversa no seguinte. Ela passa de vestidos abotoados até o pescoço e tranças impecáveis a espartilho e cinta-liga, num corte da montagem. Neste filme, mulheres são pudicas ou depravadas, donas de casa gentis ou escritoras loucas, sem meios-termos. A ideia da feminilidade beirando a histeria volta com força neste painel anacrônico das relações de gênero. Já os homens constituem figuras inertes, e as crianças, fundamentais para a existência da babá, são enviadas ao quarto sempre que possível, para a direção não precisar lidar com elas. Os gêmeos representam duas das crianças mais robóticas que o cinema já concebeu.

Se esta descrição soa negativa, espere até os trinta minutos finais. Neste momento, Por Trás da Inocência manda às favas a coerência e mergulha na lama do cinema B (ou C, ou D). O suspense psicológico passa de um filme moderadamente vergonhoso a algo espetacularmente canastrão. James tenta combinar Psicose (1960), Louca Obsessão (1990), Paixão Obsessiva (2017) e tantas obras envolvendo erotismo doentio, senso de competição, personalidades obscuras e escritores esmagados por suas criações. As reviravoltas se sucedem em velocidade espantosa, através de ferramentas de direção inacreditáveis: sugere-se o sexo oral diante de atores a um metro de distância um do outro; a mocinha se defende jogando uma folha de papel na vilã; a morte dentro do consultório resulta em efeitos de maquiagem risíveis; enquanto a investigação policial, a fuga da delegacia e o conflito no banheiro solicitam uma benevolência extrema do público. Se James tivesse mais coragem e ambição, poderia abraçar a incoerência ao limite do surreal, ou da metalinguagem jocosa. Em outras palavras, este poderia ser um filme sobre o trash, ao invés de um filme trash. No terço final, Davis grita a plenos pulmões, Grammer acentua as mudanças de voz, e efeitos computadorizados desenham algo próximo de uma possessão demoníaca. Neste caso, por que não? Quando o fracasso é inevitável, fracasse heroicamente.

O projeto se converte numa destas raras experiências de diversão involuntária. Cinéfilos e críticos se deparam com inúmeras obras onde a baixa qualidade provoca frustração, despertando ideias de melhorias que poderiam ter sido feitas aqui e acolá. Ora, este lançamento se encontra num patamar de qualidade próprio: é difícil imaginar diretores profissionais, com tamanho aparato de produção, atingirem um resultado deste nível. Deve-se admitir que James constrói um filme memorável, do tipo que dificilmente se confunde com outros suspenses psicológicos e eróticos que inundam as plataformas de streaming, e que não deve ser esquecido tão cedo. A sessão se revela genuinamente engraçada e catártica: uma sessão na sala de cinema, repleta de grupos de amigos com seus baldes de pipoca, deve ser hilária pelo potencial de expurgo coletivo diante das caretas de Kristin Davis e das falhas de montagem e continuidade. Poucos títulos conquistam um espaço no imaginário popular. The Rocky Horror Picture Show (1975) e Showgirls (1995) constituem algumas dessas experiências inicialmente péssimas, e depois abraçadas como tais, para o delírio de uma juventude sedenta pelo potencial de chacota. Apenas o futuro dirá qual caminho o filme de 2021 seguirá, porém existe potencial de se tornar uma referência do que não fazer no cinema. É delicioso se deparar com uma obra boa, mas pode ser igualmente satisfatório cruzar o caminho de alguma obra surpreendentemente ruim.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *