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Crítica


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Sinopse

Paul e Anna são os protagonistas de uma família daquelas aparentemente perfeitas. No entanto, essa fina membrana de idealização é rompida quando o filho deles adoece inexplicavelmente. O que fazer diante desse fato insólito?

Crítica

Porcelana começa com o discurso apaixonado de Anna (Laura de Boer) dedicado a Paul (Tom Vermeir). A mulher relembra as circunstâncias em que conheceu o marido, celebra o casamento e o filho Thomas (Neathan van der Gronden). Tudo parece maravilhoso nessa família semelhante a tantas outras felizes – pegando aqui emprestada a máxima de Liev Tólstoi que inaugura o livro Anna Karenina. O surgimento de algo imponderável começa a gerar rachaduras na superfície do relacionamento, logo motivando uma lenta reação em cadeia que ameaça implodir essa “perfeição”. Thomas agride gratuitamente um colega da escola; depois, tem um ataque que o leva ao hospital; mais tarde, surgem hematomas por todo o seu corpo. O rosnar do menino que praticamente não fala sugere a influência de um espírito obsessor baixado nele ou de algo mais diretamente equivalente à possessão demoníaca. No entanto, a cineasta Jenneke Boeijink não provoca o espectador a descobrir o que exatamente está acontecendo. Ela tira a história dos rumos do mistério e a envereda pelo drama familiar. O mais importante é observar como a família “ideal”, típica dos comerciais de margarina, vai ruindo aos poucos quando confrontada por alguma coisa que foge completamente ao seu controle. E a ruptura é mais violenta ao pai.

Paul é o líder de um lar orientado pelo patriarcado. Portanto, nesse núcleo familiar o homem é o centro das atenções, o que dita as regras, toma as decisões e tem a palavra final. Claro que Anna fica consternada ao ver seu único filho sofrendo dores sem explicação e se comportando como se estivesse tomado por uma força maior. Mas, é o seu marido quem mais acusa o golpe, por assim dizer, basicamente porque a turbulência deixa à mostra a sua falência como provedor. Até por isso vemos outras partes do mundo de Paul desmoronando, vide as conversas sobre os investimentos arriscados e as negociatas fracassadas. Ao mesmo tempo, está naufragando como pai, marido e homem de negócios. Na medida em que Anna se torna praticamente irrelevante para o andamento da história, Paul sobressai como a figura fraturada pelo escancaramento das próprias impotências. Quando tenta “cantar de galo” no hospital, é logo lembrado de que naquele ambiente a sua imposição de macho não funcionará; diante do filho, nada pode; a negativa do empresário com quem estava prestes a fazer negócio aumenta a sensação de insuficiência angustiante a alguém que ocupa naturalmente vários lugares de poder. E, embora a realizadora não invista tanto nisto, há algo geracional na tensão entre o filho doente e o pai.

Em dado momento da trama de Porcelana, o instável Paul tem os seus planos de aquisição comercial frustrados pelo herdeiro do homem com quem negociava – o antes vendedor resolve entregar o controle da empresa ao filho. Paul recebe uma pintura do seu falecido pai, na qual está metaforicamente retratado. Ambas são sinalizações de vínculos entre pais e filhos que remetem ao que está acontecendo com Thomas e Paul. A doença ou a possessão do menino coloca em xeque a suposta onipotência, pois escancara as limitações do chefe de família. Há margem para compreender a atitude de Thomas (irritabilidade, silêncio e autoflagelo) como reação inconsciente para “destronar” o pai. Desse modo, Jenneke Boeijink faz uma lenta e por vezes excessivamente nebulosa metáfora sobre os comportamentos dos filhos que tendem a colocar à prova as figuras paternas. Excessivamente nebulosa, pois nesse bem-vindo intuito de evitar explicações ou simplificações, às vezes a realizadora coloca o filme num banho-maria incômodo. A narrativa utiliza a força das alusões para nos convidar à leitura das entrelinhas. Ali mora aquilo que não está posto, mas perceptível a partir das reações dos personagens e das conexões estabelecidas entre a enfermidade e outros obstáculos a esse patriarca em colapso.

A atenção ao vínculo de Thomas e Paul ajuda a elucidar o sumiço de Anna. Talvez até por conta de uma resposta machista instintiva, o marido exclui a esposa sempre que possível de suas estratégias para descobrir o que se passa com a criança. Chega um ponto em que Anna simplesmente desaparece do filme, sendo substituída como figura feminina pela enfermeira que tenta ajudar Thomas. Porcelana insinua que o menino pode servir de hospedeiro a alguma força maligna, mas o andamento da trama preserva as pulgas atrás das nossas orelhas. Não há espaços para verdades incontestáveis nesse andamento aberto às dúvidas. O elemento sobrenatural nunca é confirmado como o responsável por tudo. Porém, nem por isso é descartado. O mais importante por aqui não é descobrir o que acontece, mas testemunhar os efeitos do que acontece num contexto, ao que tudo indica, antes próximo do “perfeito”. Claro que Jenneke Boeijink corre riscos ao alimentar a imprecisão, ao abdicar de explicações e apostar no implícito. Ela é parcialmente bem-sucedida nisso de dizer sem diretamente dizer e de provocar sentido ao conectar situações aparentemente desconexas. Ainda assim, cria uma experiência estimulante.

Filme assistido durante o 13ª Cinefantasy, em junho de 2022.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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