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Sinopse

Juste anda por Paris buscando pessoas que apenas ele vê. Um dia, uma jovem o reconhece. Ela está viva. Ele é um fantasma. Como poderão interagir tendo existências tão diferentes?

Crítica

Juste (Thimotée Robart) reclama de ser invisível. Ele quer voltar à "vida normal", em suas palavras. Quando os transeuntes de Paris literalmente param de vê-lo, o rapaz percebe, com alguma demora, que está morto. Prata-Viva (2019) constitui, em primeiro lugar, uma singela crônica da segregação social. O roteiro de Stéphane Batut, Christine Dory e Frédéric Videau aproxima diversas formas de exclusão: o racismo, a xenofobia, a pobreza, a morte. O jovem sem família nem ligações afetivas prévias encontra filhos de imigrantes e moradores de bairros periféricos, até se apaixonar por uma jovem de origem italiana (Judith Chemla), mãe solteira de um bairro desprivilegiado. Se toda fantasia constitui, em si, uma forma de diálogo com real (pela subversão, pela oposição, por contraste etc.), o cineasta vai além ao associar a fantasmagoria à marginalidade. Juste encontra sua função no tecido social depois de morto: ele é encarregado de fazer a transferência de novos fantasmas a um plano superior. O garoto possui uma chefe, tendo que se apresentar num escritório e prestar contas de suas atividades. Ironicamente, quando desaparece enquanto indivíduo, ele se torna uma pessoa importante.

Num segundo plano, trata-se de uma fábula romântica, cuja construção decorre tanto do imaginário hollywoodiano quanto das liberdades do cinema digital de baixo orçamento. O nome do herói não é anódino: “Justo” constitui um prenome estranho aos ouvidos franceses, mas serve a transformar o jovem numa virtude mais importante do que si mesmo. Esta figura desencarnada, porém apaixonada por uma humana, dialoga com inúmeras histórias clássicas, que vão desde Romeu e Julieta (com referências ao desfecho shakespeariano) até Asas do Desejo (1987). Batut inclui composições de Debussy e Rachmaninoff, em versões imponentes, para acompanhar os amores impossíveis do casal. Em paralelo, efetua movimentos rumo aos céus (com auxílio de drones, acenando ao efeito das gruas) e oferece cartas de amor aos amantes eternos. O autor sabe se apropriar das convenções – a mesma premissa se prestaria a um melodrama qualquer – para atualizá-las à sociedade do século XXI. Não são mencionados empregos, famílias, amizades, ligações com a religião, as escolas, a polícia ou qualquer outra instituição. Os protagonistas constituem figuras livres, estejam vivos ou mortos, atraindo-se pelo raro senso de pertencimento que fornecem ao outro.

Em terceiro lugar, Prata-Viva pode ser lido enquanto estudo sobre a representação pela ausência. Como construir a figura de fantasmas andando pela cidade sem apelar aos efeitos especiais grandiloquentes? De que maneira aproximar estas figuras de um humano comum? O diretor encontra ferramentas eficazes para se manter no realismo fantástico minimalista, sem pender ao espetáculo. Inicialmente, os fantasmas não possuem qualquer diferença em relação aos humanos comuns, enquanto Juste ignora seu novo estado. Em seguida, ele perde a imagem, tornando-se um contorno no lençol da mulher amada, ou uma peça de vestuário emprestada. A direção de arte efetua a inteligente escolha de vestir o protagonista com roupas dos mortos e das pessoas amadas, razão pela qual o rapaz invisível passeia pela cidade com uma jaqueta brilhante e uma camisa feminina. A sobreposição e os fades encarregam-se de sugerir as aparições e desaparecimentos, enquanto o sexo entre humana e espírito ocorre através da leve transparência do homem sobre a mulher. Em nenhum momento ele perde a corporeidade por completo (o herói é incapaz de atravessar portas, por exemplo), enquanto a nudez de ambos se torna fundamental ao estudo da presença. Existe uma relação complexa entre a apreensão do real e a alusão ao sobrenatural.

Judith Chemla, atriz que tem protagonizado alguns dos melhores filmes franceses recentes (A Vida de uma Mulher, 2016, Aquele Sentimento do Verão, 2015), comprova seu potencial em cena. Na posição do “interesse amoroso feminino”, ela poderia cair em inúmeras armadilhas evitadas sabiamente junto ao cineasta. Delicada sem ser frágil, imponente sem ser agressiva, Agathe sofre uma guinada importante do início ao final, sem ter uma única passagem abrupta ou improvável. Batut concebe saltos temporais sem qualquer aviso em letreiros ou diálogos, cabendo ao espectador notar mudanças nas atitudes e nos espaços. Ao longo destas transformações, Chemla desenha uma partitura tão coesa quanto diversa para sua personagem. O novato Thimotée Robert, em seu primeiro longa-metragem, corresponde às características tão apreciadas pelo realismo social francês: um corpo cru, desconstruído, sem vícios nem vaidades, dotado de fala bruta e olhos arregalados, como um animal selvagem. Há muito sangue correndo nas veias do jovem morto, muito desejo sexual no interior do corpo semitransparente. Juste é novo na vida (ele nunca havia se relacionado com uma garota), mas também é novo na morte, precisando reaprender a convivência social por meio da mulher mais experiente. O ator carrega um misto de curiosidade infantil e brutalidade adulta muito interessantes ao filme.

Por fim, Prata-Viva apresenta belezas simples, na forma de desconstruções de códigos do cinema de gênero. A ideia do morto incapaz de enxergar seu reflexo no espelho (caso dos vampiros) se converte na curiosa cena em que o fantasma observa suas costas num reflexo. A luz azulada predominante na ficção científica é explorada de maneira intradiegética, quando uma ponte de luzes azuis clareia apenas o rosto do rapaz, distinguindo-o da pele de Agathe. A circularidade típica das fábulas surge no encontro entre movimentos de câmera – os lentos zoom-in no início, amarrados aos lentos zoom-out da conclusão. Ironicamente, o último diálogo entre a dupla evita juras de amor ou promessas de reencontro, privilegiando a utopia da equivalência entre vida e morte. “Feche os olhos, para ficarmos iguais”, pede a jovem. Linda sugestão de que, sem as imagens, o toque de um fantasma e aquele de um vivo seriam idênticos, pois o afeto transcende a materialidade. O amor possui corpos múltiplos que podem ser reconfigurados, pertencendo tanto ao real quanto ao imaginário. A última troca entre os dois carrega densos significados que o espectador talvez carregue consigo após a sessão. Muito além da defesa do amor face às adversidades, o drama homenageia o império do desejo, mesmo incompreensível, injustificável, irreal, “dentro da minha cabeça”, como afirma Juste, o justo.

Filme visto online no 11º MyFrenchFilmFestival, em janeiro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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