float(14) float(3) float(4.7)

Crítica


9

Leitores


3 votos 9.4

Onde Assistir

Sinopse

Depois de 38 anos de ditadura no Zimbábue, Robert Mugabe foi retirado do poder. Os líderes militares garantiram que haveria uma eleição democrática. Depois de décadas de dominação, uma luz no fim do túnel aparece.

Crítica

Há golpes de Estado e golpes de Estado. Durante os anos 1960, a América Latina foi vítima de diversos golpes militares, financiados pelas grandes potências e marcados por demonstrações de força nas ruas, incluindo tanques de guerra e tiros disparados contra manifestantes. Aos poucos, os partidos e grupos interessados em usurpar o poder descobriram formas mais discretas de ascenderem à presidência. Os países com maior desigualdade de renda no mundo costumam apresentar uma democracia frágil, do tipo que permite decisões de impeachment sem crime de responsabilidade, prisão dos candidatos à frente nas pesquisas, fechamento do Congresso ou do Senado, organização de eleições fraudulentas devido à manipulação das urnas ou ao uso eleitoreiro de fake news. O Brasil conhece muito bem esta história, porém o Zimbábue possui sua própria luta contra o autoritarismo. O ditador Robert Mugabe liderou o país durante 38 anos através de eleições fictícias, até sofrer um golpe de sua própria coalizão, organizado pelo vice-presidente Emmerson Mnangagwa (soa familiar?). Presidente (2021) acompanha a primeira tentativa de um processo eleitoral democrático no país após quatro décadas.

O documentário dinamarquês-norte-americano-norueguês possui uma vantagem notável em relação aos demais relatos sobre crises políticas e tomadas de poder: ele não ocorre retrospectivamente, estudando o passado a partir de um momento posterior. Neste caso, a cineasta Camilla Nielsson acompanha os procedimentos de um golpe ao vivo, dia após dia. É tão fascinante quanto revoltante observar a montanha russa de otimismo e decepção que invade o Zimbábue em 2018: por um lado, o jovem candidato Nelson Chamisa, do partido de oposição, faz uma campanha inovadora e conquista as multidões, enquanto Mnangagwa, em tentativa de reeleição, promete ceder o poder ao adversário caso perca. Uma nova diretora ocupa o Tribunal Eleitoral para garantir a transparência do processo. Por outro lado, começam a surgir indícios progressivos de fraude. Os colaboradores de Chamisa são ameaçados; ele próprio se esconde após ameaças de morte; cédulas de voto são impressas em segredo. Uma vez os votos concluídos, a comissão se recusa a divulgar os resultados. Os primeiros números indicam um número de votantes que supera em até 200 mil o número de habitantes de cada região.

Nielsson adota um posicionamento firme, tanto política quanto cinematograficamente. Primeiro, ela acompanha a rotina no quartel general de Chamisa, deixando clara a sua defesa do candidato. No entanto, jamais efetua um retrato excessivamente elogioso deste homem, preferindo acompanhar o comitê estratégico em torno do político. A cineasta evita qualquer menção à vida pessoal do favorito das pesquisas, ou ainda à ocupação profissional deste para além da política: a narrativa permanece focada, durante 130 minutos, nos meandros eleitorais. Segundo, ela se coloca em posição de observadora atenta: a câmera se encontra dentro do carro de Chamisa, à mesa durante as reuniões, sobre o palco durante os discursos. No entanto, jamais ousa imprimir qualquer julgamento de valor às atitudes dos candidatos. Nielsson descarta a possibilidade de entrevistas com o protagonista ou outros personagens. Deste modo, assume o olhar estrangeiro de quem tem algo a aprender com este contexto, ao invés de embutir um posicionamento eurocêntrico à nação em crise.

Presidente causa forte impacto pela amplitude dos olhares e a competência do trabalho técnico. Há câmeras dentro dos comitês, nas ruas durante as manifestações, perto dos opositores, policiais, assessores e jornalistas. Apesar do ponto de vista progressista, a cineasta abre o escopo através de uma presença quase onisciente na capital durante os meses de campanha. A quantidade de cenas, de cenários e personagens que atravessam esta narrativa impressiona, sobretudo por sua organização: ao final, o espectador conhecerá em profundidade pelo menos uma dúzia de nomes fundamentais do novo golpe de Estado no Zimbábue. Ao invés da tradicional relação de sequencialidade (“O personagem fez isso, depois fez isso, e depois fez aquilo”), a montagem opta por ações simultâneas. Descobrimos que, durante o discurso de Chamisa a milhares de pessoas em praça pública, os assessores se desesperam no quartel general, o Tribunal Eleitoral se cala quanto às acusações de manipulação nos resultados e o partido no poder se recusa a responder às acusações de corrupção. A experiência se torna extremamente rica, pois multifocal e aberta ao confronto com as diferenças – são excelentes as cenas que em que a câmera se atém ao rosto dos principais acusados de fraude, buscando alguma forma de reação nos semblantes impassíveis.

Apesar do tom de urgência, as imagens possuem cuidado com a composição e a fotografia, ao passo que a pós-produção garante a hierarquia dos registros sonoros na mixagem, mesmo durante barulhentos comícios. Nielsson possui formidável senso de prioridade na função de diretora e orquestradora do discurso: enquanto cerca de oito homens discutem as medidas legais contra o Estado para anular o resultado absurdo das eleições, a imagem se foca em Chamisa, silencioso e apreensivo no canto do cômodo. Quanto um homem branco chega para ajudar os advogados locais, o enquadramento faz questão de destacar a diferença deste personagem em meio aos demais. Cada cena possui construção e foco precisos, além de uma dinâmica fluida estabelecida pela montagem. A diretora nunca precisa expressar suas opiniões via narração, nem através de perguntas numa entrevista: para se assegurar de seu posicionamento, basta ver a maneira como filma o espancamento de manifestantes, ou a atenção ao sorriso sinistro Mnangagwa. Esta constitui uma das formas mais estimulantes de cinema político: aquele capaz de transmitir um posicionamento pela estética.

Filme visto online no 26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em abril de 2021.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *