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Sinopse

Antes de morrer, um pai revela a seu filho segredos familiares significativos para a compreensão de suas raízes. A partir disso se desenrola uma saga familiar em que lendas e fatos se sobrepõe e se contaminam mutuamente.  

Crítica

A divulgação de Primavera vem ressaltando um fato inusitado: a produção foi rodada ao longo de 20 anos. Mas, do ponto de vista prático, esse dado é apenas uma curiosidade, já que temos em cena a atualmente reclusa (aposentada?) Ana Paula Arósio e as falecidas Ruth Escobar e Ruth de Souza. Essas destacadas duas décadas não são fundamentais ao tecido narrativo feito de inúmeros retalhos, principalmente das imagens de texturas e naturezas heterogêneas. Desse modo, o resultado está mais próximo de um Chatô: O Rei do Brasil (2015), porque exibe atores atualmente falecidos e os maduros ainda bem jovens, do que de Boyhood: Da Infância à Juventude (2014), filme norte-americano no qual a passagem do tempo é essencial e denunciada pelo gradativo crescimento do elenco infantil e o envelhecimento do adulto. E essa história possui claras inspirações num dos maiores autores da literatura latino-americana. O filme dirigido por Carlos Porto de Andrade Jr. pega emprestado recursos e métodos de dois romances do colombiano Gabriel Garcia Marquez. De Crônica de uma Morte Anunciada (publicado em 1981), a estratégia de afirmar que alguém irá morrer logo. Do colossal Cem Anos de Solidão (publicado em 1967), a espinha dorsal e várias outras noções.

Assim como em Cem Anos de Solidão, Primavera é um inventário familiar repleto de excentricidades – e para não deixar dúvidas quanto à inspiração, Carlos Porto de Andrade Jr. dá o nome de Aureliano (recorrente no livro de Garcia Marquez) a um coadjuvante de sua história. O narrador é o filho prestes a perder o pai (na versão original, Caco Ciocler é quem o interpreta). Para refazer a trajetória do sobrenome até as raízes de sua árvore genealógica, o sujeito toma como fonte um livro escrito pelos primos, que foi publicado com vários erros. Esse protagonista/narrador divaga inicialmente sobre a imprecisão dos "fatos lendários", citando poeticamente os animais que traçam retratos como contribuintes ao apagamento de tudo o que aconteceu antigamente. A efemeridade e a fragilidade, bem como a impermanência, são discutidas com o acento melancólico de quem pondera à beira da orfandade. Sem revelar seu nome, o homem curioso remexe as terras de onde sua prole veio para tentar entender como se preparar à morte paterna que se aproxima rapidamente. Sobressai uma linguagem fragmentada, vide as fotografias, as imagens em movimento e as dramatizações pomposas aglutinadas em forma de colagem. Feito de pedaços, esse tecido narrativo se assemelha bastante ao que o cineasta gaúcho Jorge Furtado pensou para documentar a desigualdade em Ilha das Flores (1989).

Para efeitos de resumo, pode-se dizer que Primavera é uma espécie de Cem Anos de Solidão contado cinematograficamente com os recursos narrativos de Ilha das Flores (intertextualidade, paródia, paráfrase, etc.). Mesmo que não tenha a profundidade poética e a sagacidade retórica da obra-prima de Gabriel Garcia Marquez, tampouco a perspicácia discursiva da notável realização de Jorge Furtado, o longa-metragem de Carlos Porto de Andrade Jr. consegue manter acesso o interesse pelos relatos imprecisos dessa família de origem europeia. Enquanto o narrador nos situa nesse campo entre as especulações, os documentos e os testemunhos pouco confiáveis, o cineasta preenche a tela com um engenhoso diálogo entre os fragmentos de origens e arranjos distintos. Assim, o detalhe do animal cortando uma folha para se alimentar é sucedido da fração significativa de um filme antigo e, logo depois, das encenações teatrais que nos tornam íntimos desses personagens de épico. Pena que Carlos não apresente alguma disputa de vozes entre o narrador e os "fantasmas" que se manifestam. O protagonista que nunca aparece fisicamente é confirmado pelos homens e mulheres corporificados que lhe antecederam na história da família. Essas existências são evocadas pelos causos do livro, mas também pelo imaginário. Quão rica seria uma divergência entre narrador e personagens?

Primavera ganha pontos valiosos ao discorrer sobre lendas e outros exageros líricos capazes de forjar um imaginário folclórico. Assim como Gabriel Garcia Marquez faz em Cem Anos de Solidão diante dos Buendía, Carlos Porto de Andrade Jr. enche essa crônica familiar de tipos e causos extraordinários, com destaque para o do amante transformado em sabão por um marido traído (e depois convertido num deleite às mulheres). No fim das contas, o acúmulo dessas pessoas e lorotas espetaculares tornam interessante a trajetória anterior ao nascimento do protagonista. A ótima montagem assinada por Emerson Brandt conjuga bem as imagens de fontes, texturas e suportes completamente distintos, assim como as dramatizações que adquirem status de testemunho post-mortem por seu barroquismo. A saturação propositalmente teatral dessas cenas gera uma sensação de que as fantasmagorias saíram do livro para embasar os relatos românticos e saudosistas do narrador. Por meio de aventuras, casamentos, condenações públicas, santas adoradas às quais são atribuídos milagres, casos conjugais e extraconjugais, é tramada a cronologia da prole. Há um ruído abafado entre a eloquência das imagens justapostas e a morosidade dos esquetes protagonizados pelos "fantasmas". Essa desproporção poderia ser utilizada para enfatizar as particularidades do que cada uma das esferas conta. Mas, aqui a distância é meramente compensatória, ou seja, a rapidez de uma repara a lentidão da outra e vice-versa.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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CríticoNota
Marcelo Müller
6
Alysson Oliveira
6
MÉDIA
6

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