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Sinopse

Cinco histórias separadas: uma ambientada na década de 1980, nas montanhas do Atlas, e as outras nos dias atuais, em Casablanca, Marrocos. No entanto, a distância temporal dessas narrativas não impede que a intolerância, a ignorância e a dificuldade em aceitar as diferenças sejam as mesmas em todas elas.

Crítica

O cineasta marroquino Nabil Ayouch já tinha demonstrado um forte ímpeto inconformista em Much Loved (2015), abordando a realidade em seu país, algo expansível a todo o Oriente Médio, valendo-se de jovens que, por meio de seus desejos de emancipação, colocavam em xeque as tradições. Em Primavera em Casablanca os questionamentos se amplificam, abarcando outras áreas dessa fatia africana, partindo da intolerância religiosa que nos anos 80 priva um professor de seguir ensinando diariamente seus alunos. Abdallah (Amine Ennaji) vive num pequeno povoado nas montanhas, instigando o interesse das crianças pelas coisas da ciência, chamando a atenção delas para movimentos solares e outras possibilidades do saber. Na sua relação com a viúva Yto (Saadia Ladib), carrega o cuidado que lhe é peculiar, preocupando-se com a fofoca dos vizinhos. Porém, como grande parte das mulheres do filme, a dona de casa demonstra determinação para aproveitar o que o amor lhe oferece novamente, marcando posição como uma figura de resistência, sendo valorizada enquanto digno exemplo.

A felicidade simples é interrompida quando um inspetor do governo obriga que as lições passem a ser dadas em árabe, atendendo aos desígnios muçulmanos, afastando os aprendizes, que não dominam o idioma. Propaga-se, assim, a ignorância em prol do pressuposto religioso fundamentado na língua como argamassa do povo. Esses traços de violência institucionalizada são constantes no longa-metragem, inapelavelmente atravessando o caminho de todos os personagens da trama-coral que extrai sua força da atração entre histórias aparentemente distintas, mas irmanadas pelo contexto. O mestre decide ir embora, não sem refletir sobre seu ato de resignar-se. Esse personagem se transforma numa espécie de consciência da coletividade que o enredo apresenta já nos anos 2000, em Casablanca, a capital de contornos cosmopolitas, inclinada aos ideais globalizados. Passado e presente dialogam para apresentar, num nível óbvio, as modificações permitidas pela modernidade e, logo abaixo da superfície, os resíduos do outrora brutal que incide sobre as experiências da atualidade.

Samila (Maryam Touzani) destoa no cenário público por ser uma mulher desinibida, que inclusive utiliza a exposição do corpo como ação política para demarcar o território de seus direitos. Ela puxa o fio da meada contestatória das demais pessoas que gradativamente ganham espaço para expressar-se. Hakim (Abdelilah Rachid), cantor e fã de Freddy Mercury, representa a juventude que combate tanto a conjuntura familiar, silenciada pelo patriarcado demasiadamente aferrado às convenções, quanto a falta de oportunidades laborais. Joe (Arieh Worthalter) é o judeu num ambiente prioritariamente árabe, sofrendo preconceito mesmo sem ortodoxias ou seguimento estrito da doutrina herdada do pai. Inês (Dounia Binebine) é a representante de uma adolescência, como todas as outras, caracterizada por questões e dúvidas de inúmeras naturezas, mas atravessada pelas particularidades do Oriente Médio, como os tabus, sobretudo os relacionados à virgindade e sexualidade. A sucessão de diferentes pontos de vista gera dispersão, com segmentos sobressaindo mais que outros.

Mesmo combalido por essa polifonia desequilibrada, Primavera em Casablanca possui méritos suficientes para se apresentar como um exemplar de valor notável. A alusão à Casablanca (1942), de Michel Curtiz, aparentemente apenas uma piscadela simpática aos cinéfilos, constitui a diferença entre realidade e ficção, algo perfeitamente aplicável ao âmbito dos mitos da religiosidade vinculada aos costumes. Essa gente é brutalmente guiada por uma série de construções coletivas nem sempre em consonância com suas subjetividades. A revolta da classe trabalhadora na festa de aniversário dos garotos mimados por uma burguesia inconsequente é outro sintoma do posicionamento crítico de Nabil Ayouch diante das circunstâncias castradoras das liberdades do povo. Embora essa leitura político-social mais direta fique restrita a instantes pontuais, com o vislumbre ocasional de protestos, ela é alimentada pelas batalhas diárias dos homens e das mulheres que, independentemente de sua crença, gênero ou posição na estrutura do cotidiano marroquino, querem somente viver.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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