Crítica
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Crítica
Muito se fala a respeito de uma suposta hombridade que residiria no ato de oferecer a outra face. Seria esse o gesto imortalizado pela Bíblia – e, por isso mesmo, distante dos pobres mortais – ou uma prática a ser buscada no cotidiano, que permitisse a possibilidade do erro e estimulasse a oferta de uma segunda chance, este é um debate que tem se mostrado cada vez mais longe do esgotamento. Ainda mais em momentos como os atuais, nos quais a polarização, a radicalização e o afastamento do debate (substituído por ataques e réplicas tão rasas quanto diretas) tem eliminado as oportunidades de troca e de crescimento. Aquele que bate, cedo ou tarde terá que apanhar, pois de outra forma, onde estaria a justiça? Os tempos de Salomão – olho por olho, dente por dente – se mostram não muito distantes do hoje se faz presente. Filmes como Propriedade, do pernambucano Daniel Bandeira, ficam no meio do caminho entre um extremo e outro, resignando-se em apenas apontar caminhos, sem, no entanto, demonstrar interesse em optar por um ou outro como solução para o problema que apresenta.
Tereza (Malu Galli, respondendo por grande parte da atenção que a trama desperta) está passando por um momento pós-traumático. Poucos dias atrás enfrentou um sequestro-relâmpago, e agora tem lidado com dificuldade para se recompor. A família entende essa condição, e por isso tem lhe dado o suporte que acredita ser necessário. Como o marido, que insiste em levá-la para o sítio que possuem no interior, em busca de “paz e tranquilidade”. Esse, no entanto, é interpretado por Tavinho Teixeira, e quem conhece o ator e diretor está ciente do seu viés inquieto e provocador, justamente o oposto desse perfil acomodado que num primeiro instante tenta vender. Eis, portanto, um piscar de olhos aos iniciados: será exatamente o contrário do que buscam que irão encontrar ao se afastarem da cidade grande. Está se falando aqui de uma elite, uma parcela ínfima da sociedade brasileira não acostumada a fazer as coisas por conta própria. Qualquer deslocamento implica no amparo de serviçais e prestadores que imaginam prontos para atendê-los sempre que desejarem. Mas o que acontece quando esses percebem que suas necessidades precisam vir antes do que aquelas de quem os pagam?
Assim que estão prestes a deixar a garagem do luxuoso prédio onde moram, a cozinheira se aproxima com uma pequena embalagem e um pedido: que o pacote seja entregue para uma familiar sua que trabalha na fazenda. É um gesto rápido, quase desapercebido, mas suficiente para que a dinâmica entre opressor e oprimidos se estabeleça. Aquela é uma mulher levada do interior para servir na capital, tendo deixado os seus para trás com a promessa de uma “vida melhor”, apenas para seguir atuando em favor daqueles que a alimentam e lhe dão abrigo (e acreditam ser mais do que suficiente). Este é o debate, portanto, que Bandeira busca compartilhar com sua audiência: não estaria na hora dessa relação ser reinventada a partir de outros parâmetros? Ou bastaria apenas invertê-la, devolvendo na mesma moeda as humilhações que por anos (e décadas, e séculos) uns infligiram aos outros?
Naquele mesmo dia, o capataz anuncia aos empregados rurais que aquelas terras estão sendo negociadas com empreendedores que pretendem fazer daquele um lugar turístico, acabando a estrutura agrícola e pecuária que ditaram as regras até aquele momento. Como resultado, estão todos dispensados. E que aceitem sem reclamar, pois o patrão “tem sido bom demais” e até concordou em pagar uma indenização a cada um (que, na maioria das vezes, será usada apenas para quitar as dívidas com a quitanda localizada no mesmo terreno). O espectador mais perspicaz irá reconhecer os parâmetros de uma condição análoga à escravidão, e esta é uma discussão que merecia um maior aprofundamento: os funcionários começam a protestar não por melhores condições de trabalho ou pelo direito de ir e vir, mas por estarem sendo mandados embora de uma hora para outra, sem preparo ou aviso, tendo que deixar para trás tudo aquilo que acreditavam pertencer, como suas casas e a natureza que conhecem desde o nascimento (em muitos dos casos). Porém, se esse é um tema apenas vislumbrado, há outro mais urgente: a resposta que aqueles acostumados a uma vida de obediência, enfim, darão a partir do instante em que decidirem levantar suas cabeças e encarar a nova situação de frente.
Este, porém, é o ponto no qual Propriedade começa a perder seu rumo. O embate será duro, e bastará um passo para que a violência tenha início, motivada por um ímpeto que não permitirá um conclusão fácil de ser alcançada. No processo, Tereza se verá sozinha, tendo que recorrer à blindagem do automóvel que a levou até aquele lugar para garantir sua sobrevivência. Os limites da crueldade serão testados assim que os trabalhadores começarem a buscar meios de tirá-la daquele refúgio improvisado. Este é um embate que lembra o recente A Jaula (2022), e ainda que deixe as soluções mirabolantes desse de lado, também falha ao oferecer uma leitura sólida quanto ao impasse que apresenta (os revoltados atacam os vidros, mas ignoram os pneus?). E assim segue-se em um crescente que afasta a possibilidade de entendimento e diálogo, como se a agressão e o descontrole fossem os únicos caminhos possíveis. Beirando o sadismo em muitas das opções elaboradas, tem-se um filme indeciso em apenas retratar o estado doentio de uma sociedade ou desempenhar seu papel como agente transformador, algo ao qual a arte deveria almejar como ambição maior.
Filme visto durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 2022
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Não vi o filme (quero vê-lo), mas li essa resenha e a julguei tola (para dizer o mínimo) porque ela parece exigir que o filme que comenta aponte "soluções" para os problemas sociais graves que retrata. Mais, o autor do texto ousa revelar seu lugar social de fala (de classe média, of course) quando diz que o filme "... segue em um crescente que afasta a possibilidade de entendimento e diálogo, como se a agressão e o descontrole fossem os únicos caminhos possíveis (para a solução dos conflitos de classes no Brasil). Beirando o sadismo em muitas das opções elaboradas, tem-se um filme indeciso em apenas retratar o estado doentio de uma sociedade ou desempenhar seu papel como agente transformador, algo ao qual a arte deveria almejar como ambição maior". Desde quando um filme precisa "apontar soluções"? Percebe-se que o resenhista tem medo de um possível conflito aberto entre a elite e as classes desfavorecidas do país e acha que "entendimento e diálogo" resolverão as diferenças econômicas e sociais entre privilegiados e desfavorecidos. Santa ingenuidade, Batman?