Crítica

No cinema de Martin Scorsese, o discurso perspicaz e assertivo – em muitas vezes arrebatador – que expõe as fragilidades do meio social e cultural ao qual a trama em questão se desenvolve sempre foi, entre outras virtudes, uma forte característica que marcou a carreira do diretor. Porém, como em qualquer evento romantizado, é preciso contextualizar e inserir essas ideias e análises dentro do desenvolvimento da história e dos personagens, o que às vezes limita tanto a voz do autor como a percepção do expectador. Agora pergunto: como seria se pudéssemos ser confrontados – ou edificados, depende do ponto de vista – objetivamente com essa gama de reflexões e ideias? A resposta você encontra ao assistir ao documentário Public Speaking, que apresenta um agradabilíssimo diálogo entre o público e a escritora norte-americana Fran Lebowitz.

Não chega a ser um diálogo, mas um monólogo, já que a escritora fala sem parar. O que justifica, assim, o título do filme e atesta o apreço que ela, aos quatro cantos, afirma ter pela arte de discursar em público. O que vemos em muitos momentos durante os oitenta minutos que duram o misto de entrevista e enxertos – que variam desde Fran discursando a universitários e concedendo uma entrevista a também escritora Toni Morrison a excelentes participações que vão de Oscar Levant (a mais engraçada) a Truman Capote – é mais, muito mais que um simples relato de mais de trinta anos de carreira da autora; é o perfeito resumo de tudo aquilo que tanto Fran, quanto Scorsese, acreditam. Em alguns breves momentos, nos quais é possível observar o diretor à frente da entrevistada, é visível a reverência e empolgação com que ele enxerga toda a bagagem intelectual que Lebowitz carrega e destila com sua língua ferina. E são nesses momentos que percebemos a perfeita sintonia que há entre o os dois. O que, inevitavelmente, leva junto quem assiste.

Tudo que é politicamente incorreto passa pelos lábios de Fran. ‘Tudo’, talvez, seja um exagero, até porque os principais pontos que vinculam seu pensamento à ala político-ideológica que mais defende essa repressão do "certinho" – os democratas, no caso dos EUA – são preservadas (como atacar o ex-presidente George W. Bush, por exemplo). Entretanto, todo o mais é alvo de suas análises frias, mas, na maioria das vezes, apropriadas e corretas. Contradizendo um dos maiores – e piores – consensos da sociedade ocidental contemporânea, que defende a democratização da cultura e a ideia que qualquer obra, por mais tola, vazia e repetitiva, seja considerada arte – os funkeiros e autores de livros espíritas certamente esbravejariam ante essa afirmação – Fran afirma categoricamente que: "a cultura deve ser feita por uma aristocracia natural de talento. Ela não tem nada a ver com raça, país ou religião. Tem a ver com quão boa ela é". Merece destaque também sua opinião à respeito da diferença entre homens e mulheres, a perseguição quase terrorista aos fumantes e a forma como as crianças e os jovens são criados atualmente.

Cinematicamente falando é impossível não observar a mão de Scorsese na edição do material. A inserção dos outros participantes e de momentos em que Fran não está sentada à mesa de bar onde a conversa com diretor se desenrola são pontuais e amarram perfeitamente o desenvolvimento teórico do pensamento filosófico da autora. Um detalhe que certamente agrada qualquer fã do diretor é a coincidência que há na escolha do carro que a escritora dirige: um Checker Marathon 1978, o mesmo que Robert De Niro pilota em Taxi Driver (1976). Coincidência que rende a reprodução de algumas cenas do filme em que o automóvel – cinza pérola, mas que os homens heterossexuais diriam que é simplesmente branco, segundo as palavras da própria – desfila pela Times Square, enquanto Fran argumenta sobre as motivações de deixar sua pequena cidade, onde era conhecida por todos, para se refugiar na vida anônima da cidade grande – bem semelhante a história de Travis Bickle.

Scorsese sabe o que faz atrás das câmeras. Mas isso não é novidade para ninguém. O ponto forte do documentário, sem sombra de dúvida, é a riqueza da personalidade de Fran Lebowitz. Egocêntrica ao extremo, porém agradável de se ouvir, ao nos fazer rir com as obviedades que diz – mas que geralmente o espectador médio não capta se não for perfeitamente e pausadamente explicado – e refletir sobre as verdades desafiadoras que propõe, ela constrói praticamente sozinha um enredo à altura do cineasta. Por isso o diretor não esconde a alegria de ouvi-la. Talvez para incentivar seu público a chegar na mesma conclusão que ele: ela é muito boa! Assim como o filme também é.

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