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Sinopse

A pandemia da Covid-19 escancarou ainda mais os abismos sociais e certas feridas abertas da sociedade brasileira. Enquanto a doença avançava no Brasil, profissionais de saúde permaneceram firmes na linha de frente do combate.

Crítica

Durante a pandemia da Covid-19, um dos episódios mais dramáticos do século 21, muito se questionou a respeito da classificação dos chamados “serviços essenciais”. Uma parcela da população conseguiu permanecer em casa, trabalhando remotamente, com isso auxiliando o panorama geral em virtude da prática do isolamento social. Porém, nem todos os membros da sociedade tiveram semelhante privilégio, inclusive aqueles que se mantiveram na linha de frente do combate a um vírus que vitimou fatalmente mais de 600 mil pessoas apenas no Brasil.  Quando Falta o Ar é um longa-metragem produzido no calor do momento, um documento histórico empenhado em valorizar o trabalho dos profissionais que arriscaram as próprias vidas para continuar desempenhando as suas funções lotadas na vasta área da saúde. Para isso, evidentemente, as diretoras (e irmãs) Ana e Helena Petta precisaram estar também no campo de batalha, acompanhando esses homens e mulheres fundamentais ao salvamento de inúmeras vidas. Elas optam por um estilo bem mais observacional do que necessariamente informativo, lançando mão de raras entrevistas com personagens, mantendo a câmera interessada por flagrantes indicativos da ação em hospitais, centros comunitários, residências, tribos indígenas afastadas, penitenciárias, ou seja, em vários lugares onde o risco aumenta por conta da carência.

Em um pouco menos de 80 minutos, Quando Falta o Ar faz um retrato sóbrio, mas nem por isso menos enfático, dessa verdadeira guerra contra um inimigo sorrateiro que muitas vezes devastou o corpo de seus hospedeiros ao ponto de fazê-los definhar. A câmera de Ana e Helena Petta permanece atenta aos detalhes dos cuidados com os pacientes, vide a cena em que enfermeiros banham vagarosamente um homem entubado que evidentemente está lutando pela manutenção da própria vida. As realizadoras refutam uma abordagem funcionalista, não construindo uma narrativa em que os processos se tornam protagonistas. No entanto, há certa contiguidade entre os eventos testemunhados, como, por exemplo, o vislumbre dos trâmites funerários recomendados para pacientes que não resistiram ao avanço da Covid-19. As diretoras confiam plenamente no poder retórico da imagem, logo evitam explicações excessivas e/ou sublinhar textualmente aquilo que está sendo transmitido visualmente ao espectador. Não é preciso reiterar a tristeza diante dos óbitos, pois ela se concretiza quando a câmera passeia placidamente num travelling lateral pelo acúmulo de sepultados num cemitério que certamente estava operando acima de sua capacidade normal. Esse desalento também surge no flagrante dos profissionais removendo o cadáver sob os olhos impotentes dos parentes então enlutados.

É claro que Ana e Helena Petta escolhem os ângulos, provavelmente preterem personagens em prol de outros mais sugestivos daquilo que desejam transmitir, se demoram um pouco mais em certas circunstâncias do que em outras. No entanto, esse conjunto de decisões não pesa sobre o resultado como uma demonstração de quem detém esse poder do olhar. Ana e Helena claramente têm simpatias e opiniões quando optam por este ou aquele exemplo, mas o filme não exala essa sensação imponente de controle, muito pelo contrário. Seu foco se estreita em pequenas histórias protagonizadas por homens e mulheres sem os quais certamente mais milhares de pessoas não teriam resistido ao avanço da Covid-19. E há pelo menos dois subtextos importantes que não chegam a ser devidamente explorados pela dupla: a função da fé e o fato de os profissionais de saúde serem, majoritariamente, provenientes de áreas economicamente carentes. Em vários instantes do filme as crenças religiosas são colocadas em evidência, seja como demonstração de confiança nas divindades ou enquanto indício de uma ignorância que poderia atrapalhar os protocolos científicos. Em pelo menos um par de instantes vemos gente pedindo proteção aos céus enquanto descumpre parcial ou totalmente as recomendações das autoridades de saúde. No entanto, essa rica dubiedade religiosa não é investigada/desdobrada.

Quando Falta o Ar acompanha alguns profissionais por mais tempo do que outros. Um exemplo de personagem que ganha tempo de tela é a agente comunitária transitando por uma área empobrecida – na qual vemos pessoas sem a devida proteção das máscaras –, se esforçando para conscientizar moradores e, mais tarde, voltando à sua casa humilde onde encontra filha e neta. Nesse grupo também está a médica da penitenciária. Aliás, ela traz à tona a questão do racismo, se apoiando em dados para constatar a maior vulnerabilidade da população negra, mas isso tampouco é elaborado. Vira nota de rodapé. Enquanto documentário voltado à observação, o vencedor do É Tudo Verdade 2020 (o maior evento de documentários da América Latina) é bem-sucedido, especialmente por não duvidar da capacidade do espectador para costurar por conta própria as histórias em prol da obtenção de um painel amplo. Então, felizmente, não estamos diante de um filme que ilustras teses, pois mantém um espaço generoso para a plateia completar determinadas lacunas e chegar às próprias conclusões. Uma pena que alguns temas e subtemas anteriormente citados não sejam tão bem concebidos, servindo basicamente como rubricas que engrossam o caldo dessa homenagem ao SUS (Sistema Único de Saúde) e aos profissionais que certamente salvaram muitas vidas e assim evitaram uma tragédia ainda maior.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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