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Crítica


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30 votos 6.8

Onde Assistir

Sinopse

Quando Pamela viaja em família, a garotinha ganha um Arlequim de presente de aniversário. O boneco começa a lhe mostrar alguns segredos assustadores da família envolvendo a mãe, o pai e o tio.

Crítica

Um dos fatores mais interessantes deste suspense mexicano se encontra no fato de os personagens perseguirem o perigo, e não o contrário. A pequena Pamela (Valery Sais) é obcecada por histórias de terror, fugindo à vigilância dos pais para assistir a imagens sangrentas de membros decepados. Quando a mãe Nuria (Fernanda Castillo) encontra uma faca de cozinha na mochila da menina – algo preocupante, convenhamos – ela percorre a casa inteira com a arma em riste atrás da garota. Chegando a uma casa isolada na floresta, os familiares escutam tiros, mas não recuam, pelo contrário, seguem em frente. Mais tarde, o tio (Iván Aranha) seguirá a origem do barulho, sozinho. Ao descobrirem o boneco pertencente a um conto macabro, não fogem do objeto, preferindo trazê-lo para a casa. Já Esteban e o irmão Bernardo (Juan Ríos) equilibram-se num tronco de árvore carcomido, servindo de ponte sobre um desfiladeiro, pelo prazer de fazê-lo. O destino será cruel com os personagens, mas por iniciativa deles mesmos. Em poucos filmes os heróis se entregam à morte com tanto gosto.

O boneco maligno também foge às expectativas. Em filmes como Annabelle (2014) e Boneco do Mal (2016), o brinquedo imóvel está possuído, ou serve para atrair forças malignas. Já o Chucky de Brinquedo Assassino (1988) finge ser inerte quando lhe convém, para então assassinar as pessoas ao redor. Em Quando Ninguém Vê (2020), o Arlequim se mostra menos malvado do que perverso: ele permite à garotinha observar coisas que seus olhos de criança não perceberiam. Enquanto a mãe trai o pai com o tio no cômodo ao lado, ou planeja um assassinato para viver com o amante, o boneco apresenta um teatrinho de fantoches ajustado ao nível de compreensão infantil. Há um interessante componente voyeur na representação metalinguística, através da encenação-dentro-da-encenação: enquanto os crimes ocorrem “de verdade” na casa, a garota os testemunha pelo decalque do teatro, com auxílio dos sons reais dos adultos sobrepostos ao espetáculo. Em outras palavras, o Arlequim se torna o diretor de um filme próprio, registrando as atrocidades ao redor e selecionando as partes mais chocantes. A adaptação do rocambolesco triângulo amoroso ao show infantil macabro constitui o aspecto mais criativo do projeto.

Infelizmente, o recurso é pouco utilizado ao longo da narrativa, e esquecido pelo diretor Agustín Tapia rumo à conclusão. O filme fica preso entre o quiproquó adulto e o mundo infantil, desenvolvendo-os em paralelo, como histórias distintas que se cruzam mal e raramente. A decisão de transformar o boneco de antiquário em versão animada, com movimentos humanizados, tampouco contribui ao terror – afinal, o personagem possui atitudes cada vez mais incoerentes. Concebido para se tornar o elo entre os dois conflitos, ele resulta dispensável dentro da narrativa dedicada, em grande parte, à estranheza de sua presença. Em outras palavras, o cineasta elabora um boneco mágico para então deixá-lo de lado e se concentrar nos amores entre a mãe, o pai e o tio. As duas esferas se prestam igualmente ao espetáculo, porém Tapia transparece maior destreza com a paródia do dramalhão mexicano, assumida como tal, do que com o gênero do terror. As poucas cenas que exigiriam talento para as regras específicas do horror (o clímax e a conclusão, em particular) sublinham as falhas do cineasta que abusa de efeitos especiais e filma cenas de confronto com inexplicável lentidão. Ironicamente, o criador desenvolveu quase toda a sua carreira dentro do terror.

Quanto ao jogo entre Nuria, Bernardo e Esteban, o elenco se encontra desequilibrado. Fernanda Castillo opera na chave naturalista, como se fizesse parte de um drama tradicional. Diante de facadas e tiros, reage com uma expressão de melancolia. Já Juan Ríos e Iván Arana mergulham no imaginário do vilão novelesco, exagerando nas expressões ao declararem o amor pela mulher dos sonhos dos dois. Quando Ninguém Vê conduz algumas sequências seriamente, acreditando assustar o espectador com a competição no tronco de árvore ou os barulhos da vizinhança. Entretanto, aposta adiante na fantasia autoparódica, a exemplo das cenas de sexo (quando Nuri crava as mãos num bloco de massa fresca) e da transformação do Arlequim. Tanto o caminho do realismo quanto o da artificialidade voluntária seria mais proveitoso do que este indeciso meio-termo. A improbabilidade dos planos maléficos e dos beijos roubados pela casa gera a impressão de delírio: seriam apenas projeções da garotinha de mente fértil? Ficções exageradas de autoria do boneco? Na incapacidade de discernir a natureza das imagens, o espectador tem sua imersão comprometida: como se preocupar com perigos que talvez não passem de sonhos?

Ao menos, o projeto ousa traçar rumos inesperados a partir de conflitos previsíveis. O cenário misto entre mansão mal-assombrada e chalé na floresta (típicos do terror de perseguição), a presença do brinquedo dotado de autonomia, os homens que revelam seus planos perversos por trás da viagem de família, as armadilhas na floresta e demais signos decorrem do arsenal típico de gênero. Em paralelo, triângulos amorosos e traições em família dominam o imaginário do melodrama. Tapia decide unir estes lugares-comuns que não costumam dividir o mesmo projeto. O resultado soa desengonçado, com problemas graves de montagem e direção. Já a fotografia e o som trazem uma construção correta, junto ao widescreen ostensivo (a mãe registra o aniversário da filha com o celular na vertical, mas a gravação se converte num scope). Caso o desfecho apresentasse potência matanças e explorasse melhor o teatro de bonecos, proporcionaria uma experiência notável. No entanto, valoriza-se a iniciativa de um filme que não se contenta com caminhos esperados.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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