Crítica
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Sinopse
Por meio de uma abordagem documental, mostra o reencontro, depois de vinte e sete anos, entre uma sobrinha, que é a própria diretora, e a sua tia, com quem não manteve nenhum contato desde a sua infância. Sua tia se chama Luma, é travesti, trabalha como cabeleireira e vive em São Paulo.
Crítica
Desde o princípio, sobressai em Quarto Camarim, além dos traços diretamente relacionados às questões de ordem familiar, a vontade de expor o procedimento cinematográfico. O primeiro terço do longa-metragem de Camele Queiroz e Fabricio Ramos dá conta, especialmente, da aparente impossibilidade de realizar um filme, precisamente o que reaproximaria Camela de sua tia travesti Luma, com quem não mantinha contato há muito tempo. Os cineastas fazem questão de documentar até os pormenores das idas e vindas que marcam das discussões iniciais com a parenta em apuros financeiros na capital paulista ao recuo dela em deixar-se registrar pela sobrinha. Os momentos de agonia da realizadora-personagem soam ora absolutamente naturais, ora delineados como pura encenação à câmera que grava tudo sem sinais de participação ativa. Ao dispositivo é facultado apenas o caráter contemplativo, inclusive pela maneira como captura a coloquialidade das etapas dessa busca.
Camele diz lembrar-se da tia, mais especificamente de seu quarto semelhante a um camarim. Enquanto remói a frustração pela recusa da protagonista, ela tenta remodelar sua abordagem, propondo-se, junto com Fabrício, a fazer algo exatamente sobre o impedimento de seguir o plano original, ou seja, um filme sobre Luma, mas sem ela, agora divorciado de sua presença física. Sem ater-se ao caráter plástico da imagem – uma espécie de desleixo um tanto quanto calculado, que permeia toda a narrativa – a produção segue essa arqueologia afetiva que passa pelo acesso tímido a outras figuras consanguíneas, algo que não agrega muito ao resultado, senão como outro dado de intimidade. Quarto Camarim possui um percurso errático, justamente em virtude dessa necessidade de deixar à mostra as engrenagens da ourivesaria dos criadores, aspecto responsável por uma dispersão gradativa da dimensão emocional que, infelizmente, perde espaço às observações, inclusive dos esforços, do ato de fazer cinema.
Quarto Camarim, entretanto, é um bem-vindo exercício dentro desse quase subgênero do documentário que dá conta dos acertos de contas familiares. Ele não fica ancorado em instantes pontuais ou preocupado com a construção, por exemplo, de um percurso coeso que desemboque em determinadas catarses, demonstrando mais vigor na retenção do prosaico, do que se esgueira pelas bordas da encenação a que todos se submetem diante das lentes. Luma tem espaço suficiente para versar sobre si, inexoravelmente se colocando na telona como símbolo do calvário transexual que começa com o processo de assumir-se perante os seus, de quem não necessariamente há o apoio solicitado. Embora escassos, são bonitos alguns momentos realmente fortes, dramaticamente falando, como a audiência de Como Nossos Pais, composta por Belchior, mas entoada com uma carga emotiva considerável por Rosana Fienngo, ela própria, a cantora que fez muito sucesso nos anos 80 com O Amor e o Poder.
É uma pena que Quarto Camarim seja combalido pelo tom excessivamente caudaloso e apenas aparentemente despretensioso de uma linguagem que privilegia os planos longos, as conversas sem, por exemplo, a intervenção pontual da montagem para dinamizar o todo. Camele Queiroz e Fabricio Ramos preferem tentar captar a espontaneidade, deixando de lado um pouco a potência de alguns instrumentais, ou seja, preterindo ferramentas que poderiam amplificar a ressonância dos temas e tópicos encarados. No fim das contas, o filme é razoavelmente exitoso, porém bonito no que tange à esfera familiar, mais detidamente na reintegração emocional da relação entre Camela e Luma, assim se configurando num documento bastante íntimo, impregnado de uma pessoalidade que lhe torna singular, mas de impacto variável, sobretudo pela forma como, repetidas vezes, o método se sobrepõe ao objeto. Ainda que isso não soterre a beleza da reaproximação entre tia e sobrinha, a verdadeira força motriz desse conjunto irregular.
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