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Sinopse

Durante uma visita ao sul da França, um diretor compra uma câmera de vídeo usada num site de leilões. No dispositivo, ele encontra imagens que o antigo proprietário se esqueceu de apagar. Aos poucos, o cineasta se torna fascinado pelos registros caseiros de Charles, e decide construir a história deste amigo imaginário.

Crítica

Este filme nasce por acaso. É fascinante se deparar com um projeto cujas motivações não provenham de um interesse prévio do cineasta, de uma mensagem a transmitir, nem de imagens a construir – apenas de um notável senso de oportunidade e observação. O diretor Ignacio Ceroi comprou na Internet uma câmera de vídeo para registrar a viagem com a namorada. No entanto, encontrou no dispositivo horas de gravações que o dono se esqueceu de apagar. O argentino descobre então a vida deste francês recluso, apaixonado pela natureza e por seus cachorros, e obcecado com a necessidade de fazer algo grandioso para conferir sentido à própria vida. Ceroi decide então construir a narrativa do amigo imaginário. Após obter a autorização via e-mail para a utilização dos arquivos visuais, começa a interpretar os registros alheios à luz de cartas enviadas por Charles. Surge uma forma de diálogo inesperada entre dois homens solitários, apaixonados por viagens e pelas imagens. Que Será del Verano? (2021) se converte na história de amizade entre dois sujeitos que nunca se encontraram, porém se uniram através da montagem.

Convém sublinhar que o material de arquivo utilizado pelo diretor não foi concebido para se tornar arte. Em última instância, Charles jamais imaginou que suas gravações seriam vistas por outra pessoa. Elas constituem um diário íntimo, e também uma proposta de cumplicidade: o francês gravava sua rotina em busca de sentido. De certo modo, tanto ele quanto Ceroi efetuam um trabalho conjunto de buscar e produzir significado a partir da banalidade. O caráter amador das filmagens tremidas, em luz natural, sem preocupação de som ou narrativa, jamais impedem este homem de transmitir a poesia bruta da natureza. Em oposição à era do selfie, onde as pessoas procuram se mostrar belas e felizes nas redes sociais, Charles gravava sua inércia enquanto forma de autocompreensão. “Quero fazer algo que valha a pena, uma vez na vida”, ele confessa. Sem sabê-lo, o homem idoso se tornava diretor, e também escritor, quando passou a detalhar com inesperada beleza as suas memórias referentes aos episódios gravados anos atrás. A arte, neste caso, não parte da intenção, mas da capacidade de reformulação por meio da linguagem do cinema.

Filmes como Que Será del Verano? provocam uma discussão densa a respeito da autoria. O conceito da inspiração única e pessoal desmorona face à criação a dois, entre desconhecidos. A ideia do gesto artístico, da motivação prévia e da busca de comunicação com o público também soa incompatível com a apropriação de imagens alheias. Sem a intenção anterior à filmagem, nem a ambição posterior, resta uma obra cujo valor se encontra no processo. O roteiro amadurece durante a montagem, quando Ceroi costura a sua história com aquela do desconhecido, ironicamente tão familiar. Na verdade, a aproximação entre o ponto de vista político do argentino (atento às manifestações dos coletes amarelos na França) e aquele do francês (reticente à sua posição de homem branco durante uma viagem a Camarões) nasce na mesa de edição. O tema deste filme jamais existiu in loco, em frente às câmeras. O documentário decorre da disposição de ambos os personagens em observarem o comum: enquanto Ceroi se apaixona pelas caminhadas e pelos cachorros de Charles, este viaja para descobrir outras realidades. “Vim para olhar. Existem muitas coisas além da França”, declara. O autor não é mais a pessoa disposta a criar, mas aquela disposta a olhar.

Pela incorporação do acaso, o resultado supera os inúmeros projetos em que diretores filmam as suas próprias vidas e aquelas dos familiares. A priori, as trajetórias de Ceroi e Charles são triviais, incompatíveis com a proposta de veículo de um “tema importante”. A capacidade de elaboração poética provém deste despojamento: o documentário aparenta pensar enquanto se constrói, servindo de digressão ao invés de oferecer noções preconcebidas. O cineasta trata o espectador como se estivesse conversando com um amigo, compartilhando a anedota improvável da câmera cheia de histórias. A posição de superioridade inerente ao criador se dilui diante do desconhecido: o argentino jamais encontrará o francês, e este ignora o uso exato de suas gravações pelo latino-americano. Ambos tateiam um terreno novo, posicionando-se em espaço de humildade e acolhimento. Ninguém efetua julgamentos morais nesta ciranda de masculinidades invisíveis: Ceroi, diretor praticamente invisível em imagens, demonstra afeto por Charles, que filma o mundo à sua frente enquanto evita captar a si mesmo. Este, por sua vez, busca no país africano os traços de Samuel, filho de uma amiga, cujo rosto jamais viu. Trata-se de uma aventura utópica pelos traços da representação.

Aberto à exposição de fragilidades, o projeto também expõe seus fracassos. Na conclusão, Que Será del Verano? atesta a frustração de todos os homens envolvidos no que diz respeito à concretização de seus planos. A maioria dos cineastas teria abandonado o projeto após a intensa busca por Charles. Em contrapartida, a impermanência e a ausência do referente se tornam o verdadeiro tema do diretor, que promove a representação ao patamar de objeto autônomo. O argentino desenha o diário de uma busca, espécie de road movie onde o término interessa menos do que o percurso. No caminho, expande o ponto de vista pelo empréstimo dos olhos alheios. Num período de dificuldade de diálogo entre as diferenças, o resultado contém um gesto de comunicação em si mesmo: além de conversar com o espectador, Ceroi debate com o amigo imaginário, com o misterioso Samuel, com a namorada distante, com uma França afetada pela crise política e econômica. O filme se encontra simultaneamente próximo e distante demais de seu tema: próximo, por invadir a casa alheia, revelar os cachorros e o cotidiano, e distante, pela impossibilidade de inserir estes fragmentos numa compreensão mais ampla. Resta um belíssimo estudo de linguagens, e a reconfiguração do autor cinematográfico enquanto indivíduo disposto à renovação do olhar.

Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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