Crítica
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Sinopse
A vida e a obra da portuguesa que, entre outras coisas, traduziu o clássico Alice no País das Maravilhas.
Crítica
Diante de uma edição de Alice Através do Espelho: E o Que Ela Encontrou Lá, de Lewis Carroll, Jorge Furtado se intrigou com o nome da tradutora do livro. Um nome simples, ao mesmo tempo tão exótico e bonito. Parecia pseudônimo. A curiosidade chegou às redes sociais e proporcionou uma grande busca. Afinal, Quem é Primavera das Neves tomou forma após anos de pesquisa, viagens, muitos depoimentos e documentos investigados. E o que o cineasta descobriu ao lado da codiretora Ana Luiza Azevedo foi uma figura que teve vários papéis: escritora, esposa, mãe, amiga fiel, leitora voraz e, acima de tudo, poeta não descoberta.
Primavera Ácrata Saiz das Neves falava seis idiomas, entre eles alemão, francês e espanhol. Foi fruto da união dos vegetarianos Roberto das Neves, jornalista português conhecido por ser um anarquista especializado em grafologia e contrário a medicamentos, e Maria Jesusa Diaz y Saíz, sufragista espanhola que escondia rebeldes em casa para ajuda-los. O casal se conheceu durante a Guerra Civil da Espanha. Os dois se apaixonaram e casaram. Quando Primavera tinha nove anos, veio ao Brasil com os pais, refugiados da ditadura. E é aqui, em terras tupiniquins, que sua história realmente começa, assim como as pistas que levaram à criação do filme.
Com a atriz Mariana Lima lendo as traduções e as cartas de Primavera, os diretores dão certo ar ficcional à obra, como se os livros traduzidos ajudassem a contar a trajetória da homenageada, cronologicamente. É também mesclando realidade e ficção que conhecemos Eulalie Ligné, amiga da época do colégio que encontrou Furtado pela internet, num blog em que ele questionava quem tinha sido Primavera. Em suas cartas trocadas com a amiga, podemos ver sentimentos e impressões pessoais, sociais e políticas através das belas palavras de uma legítima contadora de histórias. O mesmo se passa com outra conhecida, Anna Bella Geiger, artista plástica. Vizinhas desde pequenas, elas formaram um grande laço, ainda que seus gostos fossem bastante diferentes. Por meio das duas entendemos como Primavera deixou tudo para trás quando foi a Portugal e se apaixonou por seu “meio-primo”, Manoel Pedroso, com quem casou e teve uma filha.
Manoel conta com saudade outros detalhes que as amigas só sabiam superficialmente: a vida em Portugal, o exílio na Embaixada Brasileira após a resistência à ditadura Salazarista e o retorno ao Brasil com a filha de seis meses. Primavera era reservada, sua intimidade se revelava através das letras. Tinha dupla nacionalidade, o que a deixava entre dois mundos. Quando estava em Portugal, se sentia mais brasileira, achava as pessoas de lá muito fechadas e sentia falta dos amigos. Quando estava no Brasil, se sentia mais portuguesa. Vera, como também era conhecida, traduziu mais de oitenta obras de autores como Emily Brontë (O Morro dos Ventos Uivantes), Vladimir Nabokov (Transparências) e Julio Verne (Viagem ao Centro da Terra). Em 2013, completaria 80 anos. Morreu aos 47, em 1981, de uma doença cuja natureza não fica clara.
Primavera das Neves pode ser uma anônima para muitos que mal prestam atenção nos tradutores dos livros que leem. Aliás, como Furtado coloca, o tradutor é o "autor secreto" de um livro, pois é através de suas palavras que as obras chegam às suas mãos e mentes. E o documentário é uma alusão a essa profissão, já que através das imagens, documentos e depoimentos a vida da retratada é detalhada. Como toda (cine)biografia, vemos apenas uma parcela de seus dias, profissão, amores e pensamentos. A melhor forma de conhecer uma pessoa que já não existe mais é assim: por meio dos relatos de quem com ela conviveu intimamente. E a vontade que fica ao final do longa é de ter conhecido essa figura comum e fascinante na mesma medida, para desvendar mais camadas de sua incrível intimidade.
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Eu amei o documentário, onde não só me chamou a atenção pelo nome tão único dessa mulher tão interessante, assim como o fato dele ser de uma lindeza e tamanha sensibilidade. Identifiquei-me nas várias passagens de vida da protagonista, perpassadas pela história das várias ditaduras, que mesmo assim, não a impediram de viver o amor, assim como em construir as amizades infindas e de ser poeta. A profissão de tradutora, a qual também exerço, ocupando um lugar de relevância, tanto na fluidez do conhecimento, como no poder de (re)criar-se, foi um imenso presente. Gratidão por tanta emoção contida nesse simples contar sobre a vida dessa pessoa tão incrível e original.