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Crítica


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Sinopse

Apaixonado pela vida no sertão de Minas Gerais, Marcelo trabalha como vaqueiro enquanto sonha em ser narrador de rodeio. Um dia, a fazenda na qual labuta diariamente é assaltada e ele se sente profundamente impactado. Com ajuda dos amigos, Marcelo tenta reerguer-se.    

Crítica

O ambiente campesino guarda uma beleza de certa forma anacrônica, evocativa de um passado por muitos sequer vivido. O grande cineasta Humberto Mauro dizia que o progresso não era fotogênico, portanto voltou suas lentes tantas vezes ao que acontece longe das cidades caracterizadas por um agito atordoante. Em Querência o também mineiro Helvécio Marins Jr. direciona seu olhar a um bucólico espaço habitado por figuras um tanto à deriva, ainda que para elas a aparente sensação de marasmo seja tão natural quanto a lida diária com o gado. O protagonista é Marcelo di Souza, aqui referido pelo nome completo em virtude do mesmo ser uma marca a ser cultivada no peculiar mundo dos rodeios. Ganhando a vida como capataz de fazenda, ele alimenta o sonho de ser locutor de renome, vocação exercitada em pequenos eventos locais. Mas, o filme não sublinha essa vontade, nem detêm-se nos possíveis percalços para que o tal sonho se realize. Pela forma inusual de encadeamento proposta pelo roteiro, o principal acaba sendo um lento modo de vida ameaçado.

O cotidiano no meio pecuário não é chacoalhado por algum sombrio vulto externo. Nenhum capitalista desalmado aparece para arrematar os terrenos e transforma-los em símbolos desse suposto futuro menos arcaico. A intimidação sofrida no entorno beira o indireto, escoa silenciosamente pelas frestas das dinâmicas alteradas quase imperceptivelmente. Marcelo enfrenta um estado de tristeza demorado após um enorme roubo de gado na propriedade em que trabalha. Helvécio, no entanto, tampouco desenha um percurso convencional de deflagração, encare e superação da dor. Isso tudo acaba acontecendo (ou não, necessariamente) sem que tais fases sejam demarcadas, ao sabor do emplastro que os ciclos se encarregam de ofertar. Em Querência a noção de andamento cronológico é basicamente apagada. Não sabemos exatamente se a trama se desenvolve em semanas, dias ou meses. A supressão mimetiza com excelência o modo do tempo afetar a rotina num lugar como esse. A adesão do espectador curioso é essencial para que tais detalhes sejam de todo valorizados.

A costura dos acontecimentos em Querência não obedece à ideia comum da curva dramática. Em vários instantes é como se apenas acompanhássemos, com graus variáveis de interesse, o dia a dia de um homem entristecido pela forma como as violências atravessam essa geografia bucólica na qual aparentemente somente cabem os afetos demonstrados nas muitas conversas corriqueiras com amigos e companheiros de lida. As interlocuções com a irmã habitante da metrópole são sintomáticas da resistência praticamente silenciosa do protagonista que recorre à oração ensinada pelo pai a fim de restabelecer momentaneamente o vínculo da meninice que evidentemente lhe arremessa longe. Mesmo os rodeios, eventos geralmente apresentados como festivos, aqui ganham contornos melancólicos. Domar o animal na arena, nem que simplesmente por oito segundos, é um ato entendido por Helvécio como tentativa de garantir certo grau de controle sobre a natureza. Excetuando a performance, não difere tanto da intenção que por ali torna imprescindível a árdua labuta diária.

Há poucos momentos estilizados em Querência. A exceção é a forma como paisagens são esquadrinhadas em transições imageticamente destoantes. Esse despojamento redundando num naturalismo quase radical, característico de boa parte do longa-metragem, permite a sensação de genuinidade às vezes levada aos extremos. Marcelo não é um personagem construído pela soma evidente de ocasiões e perspectivas, pois surge como alguém sem atributos a serem ressaltados dentro da percepção ordinária do cinematográfico. Ele não passa por uma transformação enorme, sequer tem iniciativas que determinem viradas na trama em curso caudaloso. É a junção de gestos cotidianos, organizada por Helvécio numa operação de celebração da simplicidade, que paulatinamente nos aproxima do sujeito e dos boiadeiros dali. Essa soma supostamente banal de circunstâncias pretensamente sem peso dramático reponde à falsa sensação de estagnação. Mas, na verdade, há um estrépito paradoxalmente silencioso substanciando esse filme com ares de austera observação.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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