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Crítica


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Sinopse

Lyuba é uma jornalista que parece ter alcançado tudo o que desejava. Apresentadora de um canal de TV, ela é realizada e tem um noivo bem-sucedido. Mas, tudo muda quando ela cruza fortuitamente o caminho de Sergey.

Crítica

Uma comédia pode acontecer de várias maneiras. As situações podem ser sarcásticas, tolas, exageradas, anacrônicas, ridículas ou uma mistura de várias dessas estratégias para levar o público ao riso. Já as comédias românticas tendem a enfatizar erros e desencontros que ameaçam enlaces amorosos, mas normalmente não colocam em risco o famigerado “final feliz”. É basicamente o que acontece em Quero Casar, filme selecionado para o 3º Russian Film Festival. O maior problema não está na adesão aos velhos e desgastados modelos – o clichê não é necessariamente ruim, depende de como é encaixado/utilizado/subvertido/moldado. A grande questão é que essa história entre duas pessoas que acabam se apaixonando, mesmo contra todas as probabilidades, é feita de um acúmulo frouxo de episódios que não são bem apresentados e muito menos bem desenvolvidos e/ou resolvidos. O protagonista masculino é Sergey (Milos Bikovic), professor considerado de alto gabarito pela comunidade acadêmica. E ele enfrenta um sério problema doméstico: não consegue engravidar a esposa ávida por ser mãe. A turbulência matrimonial é apenas uma desculpa para o casal ter um dilema, pois a cineasta Sonya Karpunina não parece se importar tanto assim com as particularidades dessa impossibilidade. Já a protagonista feminina é a jornalista Lyubov (Kristina Asmus), noiva de um magnata da televisão com quem está prestes a se casar literalmente voando, circunstância que a enche de medo.

Mesmo que seja uma comédia leve, Quero Casar deixa demais desejar com relação ao quesito “elaboração de personagens”. Por exemplo, em nenhum momento há espaço para compreendermos as dificuldades de Sergey quanto à paternidade. Ele deseja? Tem medo? Está empurrando uma situação com a barriga? Fica angustiado pela imposição da esposa? Não sabemos. Nada disso é trabalhado. Já o pavor de Lyubov por voar significa exatamente o quê, a não ser algo bastante conveniente como um símbolo da inadequação entre ela e o atual noivo e, posteriormente, como sinal quase divino de que foi feita para Sergey – que, coincidentemente, também é instrutor de voo? Aliás, as casualidades são frequentes no enredo esquemático desse filme que vai empilhando episódios sem veracidade emocional/psicológica. O resultado não suscita além do que leves e breves sorrisos amarelos. O que desencadeia o conflito simultâneo nos dois relacionamentos centrais é uma série de equívocos. É algo muito comum do filão que chamamos de “comédia de erros”, em que geralmente o absurdo ganha proporções ao ponto de gerar o efeito cômico. Definitivamente, não é o que acontece por aqui. A desconfiança mútua dos atuais cônjuges desses futuros pombinhos engatilha conflitos frágeis que são reiterados numa lógica sem nuances ou força dramática. Tudo soa postiço nesse amor açucarado.

Milos Bikovic empresta a Sergey um semblante apático, transitando entre o impotente e o desinteressado. É uma forma estereotipada (até para uma comédia desse teor) de representar um homem prestes a retomar as rédeas de sua vida – essa jornada nem é importante. Já Kristina Asmus confere a Lyubov uma intensidade caótica, descontrolada, corroborando o lugar-comum da mulher destrambelhada – ou seja, incorrendo noutro estereótipo. Mas, nada disso seria problemático se o filme abraçasse o exagero, o artificial e o kitsch dos quais parece ora aproximado, ora distanciado. Outro indício de que a construção narrativa carece de consistência é a personagem da mãe de Lyubov, Anna (Yuliya Aug). Pouca coisa mudaria se ela fosse sumariamente limada do enredo, até porque em vários momentos a cineasta Sonya Karpunina a encara como se fosse uma melhor amiga inconveniente da protagonista e não uma mãe, com toda a carga de autoridade que isso pressupõe. É complicado “comprar” a ideia de que Anna e Lyubov são, respectivamente, mãe e filha. Além disso, parece que todo o mundo gira em torno desses personagens. É como se a TV, a universidade, praticamente a cidade inteira estivesse vigiando o professor e a jornalista para verem o que acontecerá nesse romance forjado.

Quero Casar não gera muita graça e tampouco engaja o espectador nas aventuras amorosas dos protagonistas. Além disso, podemos questionar elementos à luz dos discursos sobre responsabilidades. Em determinado momento da trama, Sergey cai na armação da aluna sexualmente disponível que pretende transar com ele. Mesmo numa comédia, espera-se que esse tipo de circunstância não sirva de palco para estereótipos e distorções próprias dos clichês perpetuados por uma visão machista que visa deslegitimar as denúncias de violência sexual. E o que acaba acontecendo? Sonya Karpunina constrói uma situação em que o homem se torna a vítima do plano assinado pela mulher claramente despeitada. Isso pode acontecer na realidade? Claro, existe gente capaz de tudo. Porém, num momento de inúmeras tentativas para coibir assédios e afins, soa como uma vulgaridade esse reforço do estereótipo a serviço de uma suspeita inicial sempre recaindo sobre a mulher. Não se trata de “lacrar” ou desviar o foco, mas de compreender que até uma comédia aparentemente inofensiva propaga noções que podem ser socialmente infelizes. Aliás, inofensiva é a joaninha pousada numa folha qualquer. Os filmes não têm nada de inofensivos, mesmo quando parecem apenas mais uma comédia romântica tola sobre pessoas que precisavam apenas se encontrar para terem resolvidos os seus problemas.

Filme assistido durante o 3º Russian Film Festival, em julho de 2022.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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