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Crítica


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Sinopse

Aida é a tradutora de uma equipe norte-americana de manutenção da paz. Enquanto isso, seu marido e os filhos do casal estão detidos juntos com milhares de cidadãos bósnios.

Crítica

No início dos anos 1950, Hollywood levou aos cinemas o épico Quo Vadis? (1951), drama religioso indicado a 8 Oscars que partia de um questionamento voltado ao Criador, àquele que seria responsável pela ordem de tudo e todos. Mais de meio século se passou, e foi preciso ir para o outro lado do mundo – mais precisamente para o leste europeu – para que cinema voltasse a fazer essa indagação. Mas o tempo cobra seu preço, e, com ele, o ser humano aprendeu que é preciso, antes de olhar para os céus, encarar de frente aquele que talvez seja seu maior algoz: o próprio homem. O resultado é Quo Vadis, Aida?, drama da Bósnia e Herzegovina que tem como ponto de partida um trágico evento real para, em ritmo acelerado e angustiante, traçar os destinos não apenas de uma comunidade, mas de um país e de uma sociedade que parece ter desaprendido a assumir as próprias responsabilidades. O discurso é perturbador, mas sua força está mais na reflexão que estimula do que nas palavras que emite.

Aida (uma poderosa Jasna Djuricic) mora no pequeno vilarejo de Srebrenica. Quando a região se torna objeto de disputa entre bósnios (os moradores, de maioria muçulmana) e os sérvios (majoritariamente cristãos), a ONU acaba intervindo e declara o local como “área segura, sob proteção internacional”. Acontece que tudo é muito bonito quando colocado no papel. O que faz a diferença, no entanto, é a prática. E nada foi feito pelos órgãos envolvidos para que o Exército da República da Bósnia e Herzegovina fosse desmilitarizado. Assim, com o país aos pedaços, a população não sabia a quem recorrer. E, no meio disso está a própria Aida, que trabalha como tradutora e intérprete para os (poucos) militares e representantes da Organização das Nações Unidas que lá montaram base. São eles que prometem uma segurança meramente ilusória, de bonitas declarações e poucas atitudes, pois não possuem condições e nem estrutura para cumpri-la de acordo com o esperado.

Quo Vadis, Aida? se passa ao longo de não mais do que um dia. Da reunião entre os governantes locais, incapazes de tomarem qualquer medida mais drástica, aos agentes estrangeiros, cheio de promessas, mas sem a retaguarda necessária para serem concretizadas, à movimentação dos moradores, que se veem impelidos e abandonares suas casas e ocupações em busca de um resguardo que lhes possibilitasse a sobrevivência. O que poderia ser não mais do que um relato jornalístico ou a encenação de uma tragédia que se multiplica pelo mundo em diferentes proporções (basta lembrar das muitas guerras travadas até hoje na África ou no Oriente Médio), ganha dimensões mais próximas justamente pela identificação que se estabelece com a protagonista. É apenas uma mulher, e o espectador a vê, no começo, como mais uma dentre tantas profissionais em ação. Aos poucos, porém, vai ganhando contornos que aumentam a relação entre os dois lados da tela. Afinal, é também esposa. E mãe. E como qualquer uma em situação similar, tem medo.

Djuricic, em atuação gigante, carrega o filme inteiro nas costas, em uma composição tão dramática e intensa que em nenhum instante permite vislumbrar sua interpretação, pois resultado de um mergulho profundo e complexo, atento até ao menor dos detalhes. Quando as instalações da ONU não possuem mais condições de abrigar muitos daqueles em deslocamento, milhares são barrados do lado de fora. Entre eles, o marido e os dois filhos, já jovens adultos. É quando a jornada dela se bifurca entre as obrigações profissionais – com o privilégio de acompanhar de perto o desfalecer de uma farsa improvisada – e o desespero em salvar os seus. Precisa trazê-los para dentro, lhes oferecer proteção, dotá-los de serventia e caracterizá-los como indispensáveis. Tudo para que o mal maior, aparentemente inevitável, não os alcance. Assim, sem saber para onde correr ou o que fazer antes, a audiência é colocada no seu encalço, sentindo tanto a angústia de quem se imagina encurralada como a coragem de uma leoa quando frente a uma ameaça maior do que ela.

O Massacre de Srebrenica, como esse episódio se tornou mundialmente conhecido e hoje se encontra registrado nos livros de História, segue ressoando como uma das maiores barbáries recentes da humanidade. O que a cineasta Jasmila Zbanic (indicada ao Bafta) consegue é não apenas recriar com impressionante cuidado os momentos finais antes do caos, mas também oferecer uma dimensão sólida e desesperadora daqueles que o vivenciaram no centro do tormento. De mãos atadas e sem ter a quem recorrer, Aida é o retrato de muitos que se veem desamparados por um mundo que parece não ter como se ocupar dos abandonados, dos rejeitados, dos fracos incapazes de lutar por si mesmos. Quo Vadis, Aida?, portanto, é mais do que uma indagação: é um chamado à luta. A recriação precisa de um desastre provocado pela mão do homem que, por mais que os que o viveram – e por ele passaram – lutem para esquecê-lo, precisa urgentemente ser lembrado, para que não se repita. É apenas um filme, mas é também mais do que isso: um alerta ao amanhã para que o hoje não se torne igual ao ontem.

 

 

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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