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Crítica


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Sinopse

Em 2002, Murat Kurnaz foi preso pelos norte-americanos no Afeganistão, acusado de terrorismo, e enviado a Guantánamo. Sua mãe, Rabiye Kurnaz, inicia uma verdadeira epopeia jurídica e midiática para conquistar atenção ao caso e pressionar o governo norte-americano pela libertação do garoto.

Crítica

Rabiye Kurnaz vs. George W. Bush (2022) oferece uma perspectiva inusitada a um assunto saturado. Trata-se de uma comédia sobre o terrorismo, ou mais especificamente, uma farsa a respeito das prisões arbitrárias em Guantánamo. Muito já se disse a respeito dos abusos de poder praticados durante a gestão Bush, e continuados com poucas alterações no governo Obama. No entanto, o diretor Andreas Dresen busca extrair alguma leveza do tópico ao se focar num ponto de vista raro neste debate: aquele das mães das vítimas. O drama biográfico se confronta ao percurso de Rabiye Kurnaz (Meltem Kaptan), mulher turca-alemã cujo filho é acusado de pertencer ao Talibã. Durante vários anos de luta judicial encabeçada pela matriarca, a possível culpabilidade do jovem é deixada em segundo plano. O roteiro adota como ponto de partida o direito ao julgamento igualitário e a importância de estender os direitos humanos a todos os indivíduos, por mais atrozes que sejam os crimes imputados a eles. Em paralelo, o diretor tampouco convida o espectador a se apiedar por um jovem injustiçado pelo sistema: espertamente, o discurso se mantém do lado da mãe, que apenas deseja a soltura do garoto o quanto antes. Para Rabiye e para o filme, os crimes cometidos no percurso seriam secundários em relação a outros delitos, desta vez praticados por nações em cadeias com histórico de tortura.

Logo, o ponto de partida está repleto de qualidades notáveis no que diz respeito à postura humanista e à rejeição da análise moral: debate-se o direito constitucional, ao invés da índole de Murat. Outro acerto provém da origem do humor. O texto não satiriza alemães, turcos nem norte-americanos, e sim uma figura universal passível de unir estas três culturas: a caricatura da mãe coruja. A protagonista ainda lava as roupas e prepara as refeições do rapaz de 19 anos, e quando visita um advogado, leva uma quantidade imensa de comida em tigelas plásticas para que o sujeito possa se fartar. “Come mais, pega mais!”, ela suplica. Ocasionalmente, a comédia ameaça ridicularizar a ignorância desta dona de casa que desconhece as palavras Guantánamo, Casa Branca, petição e termos relacionados. Ela seria incapaz de apontar Cuba num mapa, e não pronuncia uma palavra sequer de inglês, em contrapartida, viaja a Washington para representar as famílias de prisioneiros que aguardam julgamento há anos. Por isso, antes de transformá-la numa figura excêntrica e pueril, a narrativa sublinha a esperteza desta mulher e sua capacidade de aprender com rapidez os trâmites legais. Dresen pretende demonstrar que os esforços foram ainda mais heroicos por virem de uma cidadã desprovida de educação formal.

No entanto, o resultado sucumbe às fragilidades comuns às cinebiografias. A primeira delas reside na estrutura em checklist: o roteiro estima ser necessário pontuar dezenas de passagens do processo ao longo dos anos, razão pela qual estica a duração em duas horas, gerando um ritmo arrastado no terço central. Uma série de cenas curtas, de impacto dramático nulo, são incluídas em nome da fidelidade histórica. Além disso, como de costume, letreiros explicativos e fotos dos biografados são apresentados durante os créditos finais, para que o espectador possa comparar realidade e ficção, julgando pelo valor da cópia. A segunda consequência do estilo fatual diz respeito à dificuldade de determinar o momento certo para encerrar, e de traçar uma diversidade de tons. Quando seria melhor fechar a trama: com a conclusão específica do caso Murat? A emancipação da mãe? Os avanços legais obtidos contra o governo republicano? Na dúvida, o cineasta embute essas três possibilidades, de maneira acelerada, como se a montagem precisasse correr para ficar dentro das duas horas impostas pelos produtores. Posto que todas as sequências são carregadas de igual gravidade e teor cômico, elas passam a se equivaler: a prece da esposa no banheiro e a inesperada tendência suicida da heroína são abandonadas com uma inconsequência questionável. O aguardado instante da chegada de Murat se converte num anticlímax encurtado pela edição, sem dar tempo de contemplação ao espectador.

Por fim, Rabiye Kurnaz vs. George W. Bush constitui um filme competente visando o público médio, do tipo que raramente se encontra na mostra competitiva do Festival de Berlim. Trata-se de uma produção plena de concessões ao gosto popular — ao contrário da maioria dos títulos escolhidos no evento, que primam pela tomada de riscos. O projeto possui a aparência e o estofo de uma megaprodução, recriando em detalhes as roupas e os tribunais da época, ao passo que investe num elegante scope e satura a projeção de piadas fáceis, algumas delas incompreensíveis (a compra súbita do carro de luxo). Enquanto isso, a trilha sonora onipresente inclui muitas músicas lacrimosas nos momentos tristes e outras, mais farsescas, para as trapalhadas da protagonista. Este costuma ser um sinal de que os criadores desconfiam da inteligência do público, preferindo guiá-lo pelos sentimentos. Ao menos, Meltem Kaptan se esbalda com a personagem, em ótimas tiradas cômicas e no uso controlado de humor físico. O buddy movie instaurado entre a mãe extravagante e o advogado tímido (Alexander Scheer) resulta numa dinâmica fluida, orgânica. Os criadores encontraram uma maneira acessível de discutir política com segmentos distintos — inclusive aqueles incapazes de apontar Cuba no mapa, e que jamais ouviram falar de Guantánamo. Não se trata de uma exposição particularmente complexa, porém ela proporciona uma porta de entrada respeitável. Quantas comédias você conhece, dispostas a defender os direitos humanos e debater o terrorismo?

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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