Crítica
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Crítica
Um dos problemas mais flagrantes nas discussões políticas contemporâneas diz respeito à pressuposição de equilíbrio. A mídia pós-moderna se acostumou a buscar aparente isenção e senso de responsabilidade através da disposição a dar a mesma atenção a todas as versões de uma história. Assim, oferece o mesmo espaço aos racistas e não-racistas, aos médicos e aos charlatães, aos cientistas e aos terraplanistas, aos psicólogos e aos coaches, aos democratas e aos autocratas. Políticos conservadores acreditam que a escola deveria ensinar tanto a evolução das espécies quanto o criacionismo, enquanto no Brasil, certos deputados exigem que notícias falsas sejam consideradas tão legítimas quanto aquelas comprovadas. Disfarçado de pluralidade democrática, o anti-intelectualismo propõe que a ignorância possua o mesmo valor do conhecimento. “Afinal, esta é a minha opinião e você precisa respeitá-la”. Ora, fatos não estão sujeitos à opinião; discursos de ódio não são enquadrados dentro da liberdade de expressão. Existe um grave problema de posicionamento político a partir do momento em que se pressupõe a necessidade de “respeitar” o preconceito, o ódio e a ignorância, ao invés de combatê-los.
Raça e Redenção (2019) constitui uma defesa didática desta teoria das equivalências. Tanto o discurso quanto as imagens fazem questão de conferir a mesma importância ao posicionamento de Ann Atwater (Taraji P. Henson), mulher negra, pobre e ativista, quanto à luta de C.P. Ellis (Sam Rockwell), dono de um posto de gasolina e membro da Ku Klux Klan. Ann deseja uma vida de respeito, já C.P. Ellis deseja exterminar a vida dela e de outras pessoas, participando de ataques armados a cidadãos negros. Mesmo assim, em nome da boa vizinhança e do diálogo, o roteiro escuta a ambos, deixando que se expressem livremente. O conflito central diz respeito à integração: quando uma escola reservada a negros é incendiada na Carolina do Norte dos anos 1970, a comunidade negra solicita que seus filhos passem a estudar na escola dos brancos. Embora o juiz, os policiais e demais figuras de autoridade sejam ferozmente racistas, criam uma estratégia de mediação de conflitos, no qual as partes adversas são representadas em igual número, apresentando seu ponto de vista e possivelmente chegando a um acordo. Em um desses encontros, o supremacista negro afirma que não pretende ver seu filho estudante ao lado de crianças negras. Um personagem negro se levanta então para elogiar a honestidade e sinceridade deste discurso. Em outro momento, Ann sugere que C.P. conhece o sofrimento tanto quanto ela, pelo fato de ter um filho deficiente físico.
Dentro deste contexto, ser negro equivaleria à experiência de ser o pai branco de uma criança com deficiência. O racismo é despido de sua cultura, sua especificidade histórica e socioeconômica, para se tornar questão de “sofrimento”: se você já sofreu na vida, sabe o que significa ser negro. Por mais bem-intencionado que seja, o discurso se revela bastante problemático. Não basta existir um personagem (o mediador de conflitos, interpretado por Babou Ceesay) que estipula a simetria entre racismo e antirracismo, mas o filme também defende esta postura como exemplar. Desde a primeira cena, ambas as partes são equiparadas: começa-se com um discurso em off de um sujeito racista, e depois da ativista negra. A montagem investe no caminho paralelo: para cada cena sobre Ann, existe uma cena paralela sobre C.P. Ellis. O diretor Robin Bissell poderia enxergar esta história real enquanto uma exceção que confirma a regra: quantos nazifascistas, membros da Ku Klux Klan, se humanizariam e despiriam de preconceito após o contato forçado com negros? (Isso não constitui exatamente um spoiler, em virtude da palavra “Redenção” no título do filme e do livro que deu origem ao projeto). No entanto, o projeto acredita de fato que a conversa constitui a chave para resolução de todos os conflitos. Podemos acabar com o preconceito racial, contanto que haja um pouco de boa vontade de ambos os lados.
Em pleno período do assassinato de George Floyd nos Estados Unidos e do garoto João Pedro no Brasil, este posicionamento constitui ao mesmo tempo uma ingenuidade e uma irresponsabilidade. Preconceitos enraizados há séculos possuem mecanismos de sustentação muito mais complexos do que a índole individual. Raça e Redenção filia-se a outros dramas que tomam o racismo enquanto tema central, para sugerir a superação do impasse por meio do afeto. Histórias Cruzadas (2011) e Green Book: O Guia (2018) se tornaram exemplos de obras crentes na conciliação forçada entre as partes: ou o branco se redime e ajuda os negros a conquistarem espaço na sociedade, ou terminam por abraçá-lo, pedindo desculpas, e seguindo em frente. Vamos esquecer os séculos de opressão, de desigualdade, de privilégios, e apenas ser amigos, que tal? O abraço entre o sujeito negro e o colega racista, ao final de Green Book, representou um bálsamo de otimismo para alguns, e uma profunda ofensa para outros, devido à leitura anti-histórica e idealizada sobre a superação do racismo, além de anistiar os brancos pelos males causados. Bissell propõe um caminho semelhante ao defender a amizade enquanto ponto final ao conflito. Ora, o que aconteceria com as crianças negras sofrendo preconceito dentro da escola dos brancos? Ou acredita-se que o aperto de mãos simbólico eliminaria o racismo de uma vez por todas? É difícil aceitar a visão de que C.P. Ellis constitui o verdadeiro herói da trama por “tolerar” os negros, como se não estivesse agindo simplesmente segundo a constituição, de maneira obrigatória por lei.
Em termos de produção, o projeto transparece o cuidado da equipe com o contexto em questão. O orçamento de US$10 milhões pode não representar uma grande produção, no entanto Ellis recria os anos 1970 com carros, casas e figurinos verossímeis, enquanto demonstra refinamento ao trabalhar com o scope bem iluminado, em planos mais longos, inserindo seus personagens no espaço e privilegiando os silêncios. Mesmo assim, a aparência de obra polida se atenua diante de cenas onde o cineasta demonstra uma mão mais pesada: os zooms no rosto da pessoa que discursa contra o racismo (e há vários discursos encorajadores ao longo de filme), as aproximações numa cadeira vazia ou numa campainha tocada dentro do hospital, a sequência de vertigem após a visão de um capuz da KKK. Apesar do talento evidente, Taraji P. Henson tende a cair na composição histriônica, e o diretor aproveita ao máximo o olhar possuído de Ann, muito próxima da caricatura da matrona negra de seis largos e quadris amplos do sul dos Estados Unidos. Sam Rockwell tem se especializado em personagens violentos e fascistas nos últimos anos (vide Três Anúncios para um Crime, 2017, e Jojo Rabbit, 2019), apresentando uma composição competente, ainda que previsível. Ao final, o filme nos vende o milagre de um mundo melhor, o que o afasta da complexidade do mundo real. Se o racismo pudesse ser “resolvido” com um mediador de conflitos e um aperto de mãos, as sociedades atuais seriam muito diferentes.
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É um filme excelente!!! muito realista, vale a pena assistir...