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Sinopse

Ann Atwater, ativista negra em prol dos direitos civis, confronta um dos líderes exaltados da Ku Klux Klan, em Durham, Carolina do Norte, no ano de 1971. Ambos integram uma estratégia de mediação de conflitos proposta pelo juiz local, na intenção de decidir se crianças negras podem frequentar a escola reservada até então aos brancos.

Crítica

Um dos problemas mais flagrantes nas discussões políticas contemporâneas diz respeito à pressuposição de equilíbrio. A mídia pós-moderna se acostumou a buscar aparente isenção e senso de responsabilidade através da disposição a dar a mesma atenção a todas as versões de uma história. Assim, oferece o mesmo espaço aos racistas e não-racistas, aos médicos e aos charlatães, aos cientistas e aos terraplanistas, aos psicólogos e aos coaches, aos democratas e aos autocratas. Políticos conservadores acreditam que a escola deveria ensinar tanto a evolução das espécies quanto o criacionismo, enquanto no Brasil, certos deputados exigem que notícias falsas sejam consideradas tão legítimas quanto aquelas comprovadas. Disfarçado de pluralidade democrática, o anti-intelectualismo propõe que a ignorância possua o mesmo valor do conhecimento. “Afinal, esta é a minha opinião e você precisa respeitá-la”. Ora, fatos não estão sujeitos à opinião; discursos de ódio não são enquadrados dentro da liberdade de expressão. Existe um grave problema de posicionamento político a partir do momento em que se pressupõe a necessidade de “respeitar” o preconceito, o ódio e a ignorância, ao invés de combatê-los.

Raça e Redenção (2019) constitui uma defesa didática desta teoria das equivalências. Tanto o discurso quanto as imagens fazem questão de conferir a mesma importância ao posicionamento de Ann Atwater (Taraji P. Henson), mulher negra, pobre e ativista, quanto à luta de C.P. Ellis (Sam Rockwell), dono de um posto de gasolina e membro da Ku Klux Klan. Ann deseja uma vida de respeito, já C.P. Ellis deseja exterminar a vida dela e de outras pessoas, participando de ataques armados a cidadãos negros. Mesmo assim, em nome da boa vizinhança e do diálogo, o roteiro escuta a ambos, deixando que se expressem livremente. O conflito central diz respeito à integração: quando uma escola reservada a negros é incendiada na Carolina do Norte dos anos 1970, a comunidade negra solicita que seus filhos passem a estudar na escola dos brancos. Embora o juiz, os policiais e demais figuras de autoridade sejam ferozmente racistas, criam uma estratégia de mediação de conflitos, no qual as partes adversas são representadas em igual número, apresentando seu ponto de vista e possivelmente chegando a um acordo. Em um desses encontros, o supremacista negro afirma que não pretende ver seu filho estudante ao lado de crianças negras. Um personagem negro se levanta então para elogiar a honestidade e sinceridade deste discurso. Em outro momento, Ann sugere que C.P. conhece o sofrimento tanto quanto ela, pelo fato de ter um filho deficiente físico.

Dentro deste contexto, ser negro equivaleria à experiência de ser o pai branco de uma criança com deficiência. O racismo é despido de sua cultura, sua especificidade histórica e socioeconômica, para se tornar questão de “sofrimento”: se você já sofreu na vida, sabe o que significa ser negro. Por mais bem-intencionado que seja, o discurso se revela bastante problemático. Não basta existir um personagem (o mediador de conflitos, interpretado por Babou Ceesay) que estipula a simetria entre racismo e antirracismo, mas o filme também defende esta postura como exemplar. Desde a primeira cena, ambas as partes são equiparadas: começa-se com um discurso em off de um sujeito racista, e depois da ativista negra. A montagem investe no caminho paralelo: para cada cena sobre Ann, existe uma cena paralela sobre C.P. Ellis. O diretor Robin Bissell poderia enxergar esta história real enquanto uma exceção que confirma a regra: quantos nazifascistas, membros da Ku Klux Klan, se humanizariam e despiriam de preconceito após o contato forçado com negros? (Isso não constitui exatamente um spoiler, em virtude da palavra “Redenção” no título do filme e do livro que deu origem ao projeto). No entanto, o projeto acredita de fato que a conversa constitui a chave para resolução de todos os conflitos. Podemos acabar com o preconceito racial, contanto que haja um pouco de boa vontade de ambos os lados.

Em pleno período do assassinato de George Floyd nos Estados Unidos e do garoto João Pedro no Brasil, este posicionamento constitui ao mesmo tempo uma ingenuidade e uma irresponsabilidade. Preconceitos enraizados há séculos possuem mecanismos de sustentação muito mais complexos do que a índole individual. Raça e Redenção filia-se a outros dramas que tomam o racismo enquanto tema central, para sugerir a superação do impasse por meio do afeto. Histórias Cruzadas (2011) e Green Book: O Guia (2018) se tornaram exemplos de obras crentes na conciliação forçada entre as partes: ou o branco se redime e ajuda os negros a conquistarem espaço na sociedade, ou terminam por abraçá-lo, pedindo desculpas, e seguindo em frente. Vamos esquecer os séculos de opressão, de desigualdade, de privilégios, e apenas ser amigos, que tal? O abraço entre o sujeito negro e o colega racista, ao final de Green Book, representou um bálsamo de otimismo para alguns, e uma profunda ofensa para outros, devido à leitura anti-histórica e idealizada sobre a superação do racismo, além de anistiar os brancos pelos males causados. Bissell propõe um caminho semelhante ao defender a amizade enquanto ponto final ao conflito. Ora, o que aconteceria com as crianças negras sofrendo preconceito dentro da escola dos brancos? Ou acredita-se que o aperto de mãos simbólico eliminaria o racismo de uma vez por todas? É difícil aceitar a visão de que C.P. Ellis constitui o verdadeiro herói da trama por “tolerar” os negros, como se não estivesse agindo simplesmente segundo a constituição, de maneira obrigatória por lei.

Em termos de produção, o projeto transparece o cuidado da equipe com o contexto em questão. O orçamento de US$10 milhões pode não representar uma grande produção, no entanto Ellis recria os anos 1970 com carros, casas e figurinos verossímeis, enquanto demonstra refinamento ao trabalhar com o scope bem iluminado, em planos mais longos, inserindo seus personagens no espaço e privilegiando os silêncios. Mesmo assim, a aparência de obra polida se atenua diante de cenas onde o cineasta demonstra uma mão mais pesada: os zooms no rosto da pessoa que discursa contra o racismo (e há vários discursos encorajadores ao longo de filme), as aproximações numa cadeira vazia ou numa campainha tocada dentro do hospital, a sequência de vertigem após a visão de um capuz da KKK. Apesar do talento evidente, Taraji P. Henson tende a cair na composição histriônica, e o diretor aproveita ao máximo o olhar possuído de Ann, muito próxima da caricatura da matrona negra de seis largos e quadris amplos do sul dos Estados Unidos. Sam Rockwell tem se especializado em personagens violentos e fascistas nos últimos anos (vide Três Anúncios para um Crime, 2017, e Jojo Rabbit, 2019), apresentando uma composição competente, ainda que previsível. Ao final, o filme nos vende o milagre de um mundo melhor, o que o afasta da complexidade do mundo real. Se o racismo pudesse ser “resolvido” com um mediador de conflitos e um aperto de mãos, as sociedades atuais seriam muito diferentes.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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