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Sinopse

Hidetora, o poderoso chefe de um dos clãs mais importantes do Japão feudal, decide dividir todos os bens entre seus três filhos: Taro, Jiro e Saburu. Começa uma espiral de conflitos e descontentamentos, o que gera uma turbulência enorme no seio da família. Por sua vez, Hidetora se aproxima da insanidade.

Crítica

A temática da guerra sempre foi cara aos grandes cineastas. De John Ford a Francis Ford Coppola, passando por Steven Spielberg e Stanley Kubrick, invariavelmente esses realizadores acabavam debruçando seus olhares em conflitos épicos. Com Akira Kurosawa não foi diferente. Aliando esse apreço ao seu interesse pelas relações no Japão feudal e por uma curiosidade indisfarçável pelo Ocidente, e seria apenas uma questão de tempo vê-lo diante de uma das maiores obras de William Shakespeare: Rei Lear. Pois isso é exatamente o que acontece em Ran, muito provavelmente o último dos seus filmes inesquecíveis. Depois desse, o diretor japonês entregou mais três longas, todos recebidos com reações mistas, entre a condescendência e um afeto memorialista. Aqui, não. Poderia ser por ter sido essa sua única indicação ao Oscar como Melhor Direção, mas há mais, como os prêmios e indicações recebidos no Bafta, Globo de Ouro, Academia Japonesa de Cinema, César, David di Donatello, Film Independent Spirit, National Board of Review, Sociedade Nacional dos Críticos de Cinema dos EUA e Festival de San Sebastian, entre tantos outros. É, portanto, uma obra referencial, instalada confortavelmente entre as maiores de uma filmografia primorosa.

O texto original de Shakespeare, ainda que popular no teatro e na literatura, não chega a ser um dos mais lembrados no cinema. Está longe, por exemplo, de registrar nas telas a frequência de um Hamlet ou de um Romeu & Julieta, por exemplo. Mas há algumas versões curiosas, como o recente telefilme King Lear (2018), com Anthony Hopkins, o curioso e feminista Terras Perdidas (1997), com Michelle Pfeiffer e Jessica Lange, o clássico Rei Lear (1971), com Paul Scofield, e até uma versão contemporânea assinada por Godard (Rei Lear, 1987). Nenhum, no entanto, alcançou a repercussão e o reconhecimento de Ran. Muito disso se deve à reverência que Kurosawa demonstra em relação ao texto original, mantendo sua estrutura nos moldes mais básicos, facilitando a identidade e o mergulho nos dramas expostos ao público, independente de que lado do planeta o espectador esteja. Por outro lado, é de se notar também que ele, apesar de partir de terreno conhecido, não hesita em navegar por outras paragens, inserindo sua narrativa por ambientes tão exóticos quanto poderosos, dotando o conjunto de uma força intensa que funciona no sentido de renovar seu interesse.

Lorde Hidetora (Tatsuya Nakadai, ator-fetiche do diretor e principal substituto de Toshiro Mifune após esse ter parado de trabalhar com Kurosawa) está cansado de tantas batalhas. Hoje, é um homem em paz, daqueles que é capaz de adormecer à mesa após uma boa refeição, sem sequer se importar com as visitas ou companheiros que seguem em suas conversas ao seu redor. Tanto se sente confortável em sua condição que está pronto para dar um passo importante: é chegado o momento de pensar no futuro do seu reinado e no papel que cada um dos seus três filhos irá desempenhar nessa até então inédita configuração. Assim, anuncia sua decisão perante o trio e também diante de uma audiência maior, formada por conselheiros e irmãos em armas. E assim determina: Taro (Akira Terao, de Madadayo, 1993), o mais velho, herdará seu título, além da maioria das terras e posses. Quanto aos demais – Jiro (Jinpachi Nezu, de Kagemusha: A Sombra do Samurai, 1980), o do meio, e Saburo (Daisuke Ryû, de Depois da Chuva, 1999), o caçula – caberá aos dois seus próprios castelos, assim como servirem de acordo com as orientações do irmão mais velho. Uma combinação que teria tudo para funcionar no papel – ou no campo das ideias – mas que rapidamente se verá inviável no exercício das ações.

Bom, que as coisas não sairão conforme o esperado pelo ancião, não chega a ser nenhuma surpresa. O mais novo será o primeiro a alertá-lo que problemas surgirão rapidamente, mas não é levado em consideração, a ponto de ser banido do reino. Restarão os outros dois, que se mantiveram calados, mas não tardarão a executar planos individuais. O primeiro, ao assumir o trono, logo esquecerá de quem o colocou em tal lugar, passando a considerar irrelevante o velho pai, sem direito a privilégios ou mesmo digno de importância. Ofendido, o antigo monarca partirá, em busca de abrigo com o único filho que acredita ainda ter alguma proximidade. Mas esse também terá seus motivos para não mais tratá-lo como antes. Abandonado pelos seus e sem ter para onde ir, restará apenas o bobo da corte como companhia, enquanto que o mais jovem dos herdeiros, justamente aquele rejeitado, será quem partirá para a luta em nome da honra da família. A ironia está por todos os lados, e se torna ainda mais forte quando percebida que, neste mundo de homens, são as mulheres que, de fato, ditam as regras. Sim, pois detrás desse desenlace familiar, há outras razões e anseios em movimento – como uma antiga vingança. Nesse viés, a influência de Lady Kaede (uma impressionante Mieko Harada, vista também em Sonhos, 1990) agirá de forma decisiva para determinar os destinos aqui envoltos. Ela nunca está no centro das discussões, mas serão as suas vontades que, na maior parte das vezes, serão executadas.

Além das intrigas palacianas que tão bem cabem aos eventos percebidos em Ran, Akira Kurosawa revela sua maestria também nas escolhas dos cenários – muitos em campo aberto, impressionando pela beleza e exercendo papel decisivo no ambiente de opressão e traições que se sucedem na trama – como também nos absurdamente belos figurinos (premiados com o Oscar). Mas é como o condutor dessa história de golpes e contragolpes, com sequências de confrontos de deixar qualquer um abismado, seja pela complexidade de suas logísticas como também pela posição precisa que ocupam no andar dos acontecimentos, que ele exerce sua verdadeira maestria. Tem-se, portanto, um filme para ser, mais do que visto, também percebido, pois exige cuidado e dedicação para adentrar suas frases não ditas, suas intenções dissimuladas e os reflexos há muito adiados. Como um sábio jogador de xadrez, vai orquestrando esse caos como na lida de uma ópera de diversos atos e entreatos, mas cujo desfecho é menos relevante – até por ser passível de antecipação – do que a soma das suas muitas partes, dispostas sem pressa, porém sempre com bastante adequação. Pode ter sido o adeus de um gênio, mas digno de todos os méritos que fomentou por toda a sua filmografia.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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