Crítica
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Sinopse
Adolescente religiosa, Raquel se muda com o pai ao interior do Brasil para começar uma vida nova. Enquanto se enturma com as meninas evangélicas da igreja local, ela experimenta um misterioso despertar místico.
Crítica
Raquel (Valentina Herszage) é a recém-chegada numa cidade interiorana cujos moradores, em grande parte, são religiosos convictos. Como ela também parece devota, vide a bíblia retirada da mala na mudança, o cenário tende a ser convidativo à sua adaptação. Por essa perspectiva, Raquel 1:1 ameaça romper laços com o clichê do forasteiro vindo de uma realidade cosmopolita sendo rechaçado pela comunidade provinciana que o enxerga como ameaça. No entanto, a cineasta Mariana Bastos não demora a tomar exatamente esse caminho antes trilhado por realizadores tão díspares quanto Nicholas Ray (Juventude Transviada, 1955) e Herbert Ross (Footloose: Ritmo Louco, 1984). Raquel é uma figura construída de dentro para fora, uma daquelas personagens que parecem lutar intimamente a cada segundo para conseguir o mínimo de apaziguamento. Méritos da boa composição de Valentina Herszage, atriz que despontou há alguns anos justamente em outro filme que também colocava em relevo o neopentecostalismo abraçado como discurso orientador por meninas ainda bastante jovens: Mate-me por Favor (2015). Aqui ela constrói esse enigma observado de poucos ângulos, com a preservação de certas áreas cinzentas que fazem bem ao todo. Porém, a repetição de tom na progressão da trama deixa uma dúvida: Raquel é introspectiva ou apática? Diferenciar isso se faz importante.
Em instantes pontuais de Raquel 1:1, a ausência de uma oscilação emocional significativa provoca essa involuntária aura de apatia. Peguemos como exemplo o personagem do sempre competente Emílio de Mello, o pai de Raquel. Ainda que manifeste estar sob muita pressão, mencionando dívidas restritivas e uma dificuldade enorme para lidar com a mudança necessária em virtude de sua asfixia financeira, ele permanece na mesma voltagem: é um homem preocupado com a filha, às vezes hostilizado pelos conterrâneos, mas que não vai tão além de ser uma espécie de superego censurando os impulsos misteriosos da protagonista. Pelas demais pistas que temos sobre esse homem, é de se lamentar a inserção dele num painel tão restrito. A própria Raquel padece um pouco por conta dessa falta de variações. Acossada por flashes sonoros do passado – e esse dispositivo de reverberação da memória é interessante –, ela repentinamente deixa de ser uma devota que preocupa o pai e começa a questionar as novas amigas sobre a validade das palavras escritas na bíblia. Essa mudança acontece de supetão, chacoalha relações ainda em construção, mas isso não é suficiente para acessarmos outros aspectos de uma personalidade que fica excessivamente escondida pela névoa da... apatia. Mesmo assim, o filme traz certas discussões importantes e tenta elaborar elementos de horror.
Há uma cacofonia de sussurros quase inaudíveis convocando Raquel a uma ruína situada no seio da floresta; os cadernos da protagonista estão repletos de desenhos macabros em que sombras e monstros provavelmente exteriorizam as suas angústias; o sangue é utilizado em medidas distintas, mas, frequentemente, para sinalizar a possibilidade de algo ruim. Desse modo, como contraponto do discurso cristão tacanho, agressivo e preconceituoso, Mariana Bastos oferece a possibilidade de uma jovem mulher cujo estado febril pode ser a somatização de uma instabilidade mental, mas também a atividade de uma entidade maligna? Raquel 1:1 felizmente não está preocupado em oferecer respostas apaziguadoras, ainda que alguns indícios apontem fortemente para uma direção em detrimento das outras. No entanto, é curioso que este filme chegue aos cinemas quase concomitantemente a Medusa (2021), outra produção em que adolescentes são cooptadas por uma doutrina que as conforma com os discursos de submissão. No entanto, o longa dirigido por Anita Rocha da Silveira diagnostica o terror como uma doença proveniente da retórica religiosa, enquanto Mariana Bastos prefere encarar a doutrina como algo potencialmente nocivo, mas em perspectiva à existência da personagem antagonista a ela – e que pode estar sob influência de algo negativo. Os ruídos nessa comunicação atrapalham.
O que sobressai positivamente em Raquel 1:1 é a iniciativa de expor a responsabilidade do discurso religioso para a instauração e perpetuação da opressão feminina. Nesse sentido, Raquel poderia ser ainda mais encarada como encarnação moderna das bruxas queimadas em fogueiras públicas na Idade Média, a força feminina rechaçada por um machismo disposto a tudo para perpetuar a sua supremacia. Porém, Mariana Bastos parece um pouco tímida diante da possibilidade de cravar esses papeis e, sobretudo, de utilizar do horror para potencializar a atmosfera repleta de animosidades e tensões. Inclusive, esses artifícios poderiam compensar certas dificuldades de produção, como as observadas nas cenas com vários personagens (culto da igreja, festa, etc.) que parecem sempre carentes de componentes que as tornem críveis. A realizadora evita colocar os dois pés no gênero, talvez porque seu projeto principal é nunca determinar se uma coisa é ou se poderia ser de certa maneira. Outro fator que tira alguns pontos do filme é a pouca consistência na construção dessa comunidade, cujo provincianismo seria tão importante para desenhar o calvário da protagonista. Basicamente, temos o núcleo da igreja e um par de pessoas inseridas dentro daquele contexto a parir dos preconceitos e atitudes observados entre os religiosos. As cenas escuras escancaram esse apreço pela penumbra, pela indeterminação. No entanto, o resultado que poderia ser obscuro acaba sendo meio letárgico.
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