Crítica
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Sinopse
Manguari Pistolão é ao mesmo tempo um herói e um homem comum. Atuante na militância em boa parte da vida, agora terá que enfrentar o mesmo que seu pai: seu filho, Luca, pretende deixar a faculdade de Medicina e ingressar de vez no movimento hippie. Em um crescente conflito com as escolhas do garoto, verá seu passado sendo reinventado na figura dele.
Crítica
Baseado na peça homônima de Oduvaldo Vianna Filho, Rasga Coração é um drama de cunho geracional, no qual a relação dos indivíduos com as causas concernentes às políticas interfere, baliza e determina os elos pessoais. O protagonista é Manguari Pistolão (Marco Ricca), funcionário público, classe média, morador de um apartamento herdado em Copacabana, casado com Nena (Drica Moraes) e pai do adolescente Luca (Chay Suede). As economias do casal visam o futuro universitário do garoto. Já as causas defendidas anos atrás nutrem o incentivo do genitor às reivindicações dos jovens que atualmente decidem abraçar pautas inclusivas e de representatividade. No princípio é visível que o veterano constantemente faz as vontades do filho, barganhando por seu afeto e admiração, enquanto a mãe assume-se a “megera”, controlando até os supostos romances homossexuais mantidos privativamente no quarto. A forma como o passado atravessa o agora é tão eficiente e expressiva que condiciona a compreensão do cenário, tanto o social quanto o afetivo, sendo imprescindível à complexidade da concepção desse retrato tenro e multifacetado.
O roteiro de Rasga Coração tem como dinâmica central a alternância temporal, com o outrora pontualmente atravessando o presente a fim de significa-lo. Nesse sentido, a montagem precisa de Giba Assis Brasil amplia a potência do fértil entrelaçamento das instâncias. Concomitantemente à luta de Luca e de sua namorada, Mil (Luisa Arraes), pelo direito de vestir-se como bem entendem no ambiente escolar, há a rememoração de uma herança de valentia. Manguari chegou a ser torturado por abraçar o combate à arbitrariedade da ditadura civil-militar. O cineasta Jorge Furtado promove frequentemente a deflagração de contradições, com comportamentos, antes reprovados, veementemente ressurgindo para mostrar certa inclinação da História ao eterno retorno. O personagem de Marco Ricca não é tipificado vulgarmente como um acomodado antes pautado pela inquietude, porque a sustentação dessa transformação insuspeita é tão bem fundamentada que a convenção se torna pungente. Dessa maneira, ele é observado como um sujeito repleto de espessura e contrastes internos.
Rasga Coração equilibra habilmente razão e emoção. No que tange à primeira esfera, há discussões substanciais acerca de utopias, briga por direitos, arrefecimento do ímpeto contestador, alienação e certa inércia. Já no que diz respeito à segunda, o amor desbragado do pai que deposita no filho suas expectativas, frequentemente exacerbadas, e que não leva em consideração as particularidades desta geração. Manguari acaba reprisando, inconscientemente, o padrão comportamental de seu pai autoritário, vivido com intensidade por Nelson Diniz. Se antes ele fazia de tudo para agradar Luca, gradativamente passa a questionar a falta de interesse do adolescente em assuntos essenciais. Jorge Furtado utiliza poucos ambientes, no mais das vezes se restringindo ao apartamento da família. Mesmo assim, cria um filme vibrante, de constante movimento, em que as vicissitudes dos relacionamentos, as turbulências internas e as dores redivivas do ontem reverberam, mesclando-se à nostalgia, insuficiente para mostrar o caráter cíclico aos então desorientados do enredo.
A despeito da insistência nas quase exageradas reprimendas da personagem de Drica Moraes, o elenco é um dos principais pilares de Rasga Coração. Especialmente Marco Ricca, excepcional como o homem que convive com os fantasmas do passado revolucionário no presente aburguesado. João Pedro Zappa sai-se muito bem como a versão jovem dele, repleta de energia e dada a experimentar novas sensações e estados quimicamente alterados. George Sauma está ótimo como Bundinha, o hedonista, o espírito livre abatido pelo sistema que permite sobrevivência apenas aos que se adequam minimamente. Se comparado a outras obras de Jorge Furtado, o filme reafirma a preocupação do cineasta gaúcho com minúcias e reivindicações sociais, vide o abafamento do discurso da estudante negra numa assembleia pretensamente progressista, cuja rima com o racismo observado na era de chumbo – e ecos do curta-metragem O Dia em Que Dorival Encarou a Guarda (1986) – é possível por meio da justaposição bonita e contundente de ocorrências separadas por décadas. Tudo isso é visto no afloramento dos detalhes e na grande sensibilidade diante dos latentes dramas humanos.
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