float(70) float(16) float(4.4)

Crítica


7

Leitores


16 votos 8.8

Onde Assistir

Sinopse

Enquanto tenta furar a bolha do mundo dar artes em Washington, um jovem artista plástico conhece uma não menos brilhante advogada e começa com ela um relacionamento daqueles de marcar uma vida inteira.

Crítica

A ascensão de jovens realizadores negros norte-americanos tem provocado uma modificação sensível na paisagem dos filmes feitos nos Estados Unidos. Há casos notórios, como o de Ryan Coogler, vindo da esfera independente e que comandou o elogiado blockbuster Pantera Negra (2018). Mas existem outros exemplos menos celebrados do que deveriam, pois acontecem em nichos de menor alcance midiático. Com Queen & Slim: Os Perseguidos (2019), Melina Matsoukas deu um trágico verniz racial ao modelo dos casais desbravando estradas em road movies orientados por urgentes anseios de liberdade; com Desculpe Te Incomodar (2018), Boots Riley fez uma operação parecida de ressignificação do olhar ao mercado de trabalho, mesclando comédia, fantasia e ficção científica com um forte acento racial; com The Forty-Year-Old Version (2020), Radha Blank resgatou a tradição da crônica de personagens negros habitantes de metrópoles em transformação (acenando abertamente a Spike Lee), mas retrabalhando tais códigos a partir da ótica feminina. Really Love se insere nesse movimento que ainda não ganhou a devida atenção do público e tampouco da imprensa especializada. A trama fala basicamente de um garoto que conhece uma garota. Eles se apaixonam, vivem momentos inesquecíveis, mas vários problemas se impõem até inviabilizar o que parecia perfeito.

Do ponto de vista estritamente da premissa ou mesmo dos trajetos que toma rumo ao (lindo) desfecho, Really Love não apresenta grandes novidades e/ou desafios. O que confere personalidade à realização da cineasta Angel Kristi Williams é o recorte e a articulação dos componentes em camadas. E isso dá ao esqueleto narrativo surrado um tempero singular. Desde as cenas iniciais fica evidente que o interesse principal da criadora está na configuração de uma realidade negra norte-americana distante dos estereótipos de pobreza e violência. Isaiah (Kofi Siriboe) e Stevie (Yootha Wong-Loi-Sing) se conhecem num vernissage, especificamente admirando rostos e corpos retintos pintados por um artista plástico já consagrado (negro). A troca de olhares, a aproximação dele para puxar assunto com ela diante do quadro de uma mulher afro-americana, tudo isso é filmado com atenção às sutilezas, ao que não precisa ser verbalizado para existir e ser compreendido. Quase todas as pessoas ao redor têm a pele retinta dos protagonistas – exceção feita ao garçom branco que passa ao fundo, aliás, detalhe importante pela inversão de uma lógica de servidão. Dali para adiante não será muito difícil antever os passos que virão na sequência do interesse prontamente reafirmado pela coincidência. Trilhar caminhos bastante conhecidos não é ruim por aqui, pois se trata de algo orientado por gestos.

E esses gestos estão justamente na apresentação do mundo distante dos lugares-comuns reiteradamente atrelados à negritude norte-americana. Importante dizer que esse distanciamento não significa alienação, aliás, de modo nenhum. Angel Kristi Williams opta por mostrar os protagonistas numa conjuntura que a representação cinematográfica vetou aos negros durante muito tempo. Quem disse que Isaiah e Stevie não podem ser atravessados por questões (existenciais, filosóficas), sem que isso resulte numa asfixia por dilemas unicamente raciais? Ele é um artista plástico promissor; ela é uma advogada também de futuro brilhante. Após o encontro, a sedução inicial, as trocas que geram a gradativa intimidade, os dois passam a dividir o mesmo teto e experimentar as dores e as delícias do casamento – ainda que não haja a oficialização cerimonial. Em meio à dinâmica matrimonial, eles debatem entre si e com o entorno também distanciado das convenções. Os tópicos sugeridos tornam o filme mais denso, orgânico e complexo. Um desses apontamentos essenciais é a pressão dos pais para que os filhos tenham estabilidade econômica. Já vimos inúmeras obras em que jovens sonhadores têm de lutar contra a obsessão paterna por segurança financeira. No entanto, aqui o que está implícito, sempre que pais ou mães parecem impositivos demais, é uma perspectiva histórica, social e racial.

A geração de Isaiah e Stevie colhe os frutos das batalhas vencidas por seus pais que certamente tiveram outra experiência com o racismo incrustado nos Estados Unidos. Portanto, é quase natural que homens e mulheres (os pais) marcados por essas lutas queiram assegurar o futuro dos filhos para não vê-los sofrer. Eles, por sua vez, desejam viver as próprias experiências no agora. Esse conflito geracional é frequentemente sinalizado, mas não excessivamente insistido. O roteiro faz desse tópico um pilar do contexto, bem como um dos vários sintomas bem distribuídos para cercar o amor dos protagonistas. Esse elo é distribuído nas camadas que se desdobram como em ondas crescentes – relacionamento < família < bairro < cidade < estado < país < mundo. Já as elipses (supressões de tempo entre blocos da trama) são bem utilizadas, numa estratégia que permite à cineasta cobrir um período relativamente longo sem gerar a sensação de pressa e/ou superficialidade. Outra engrenagem vital de Really Love é o figurino assinado por Kairo Courts – o mesmo dos episódios finais da saga Jogos Vorazes e de Um Príncipe em Nova York 2 (2020). O colorido das roupas remete imediatamente à estética das tradições africanas e garante a aura chique/descolada dos personagens. Falando dos protagonistas, os ótimos desempenhos de Kofi Siriboe e Yootha Wong-Loi-Sing os enchem de ternura.

Dentro das sutilezas presentes na abordagem do longa-metragem, também é possível identificar um desequilíbrio de gênero. Isaiah tem origem mais humilde e sofre para ser reconhecido no meio artístico – aliás, no qual Uzo Aduba faz uma participação especial como outra negra detentora de poderes e influências. Ele se encaixa bem no arquétipo do artista obcecado por reconhecimento que, em certa medida, vai se tornar um tanto refém da lógica mercantilista. E ainda bem que a cineasta não fica demasiadamente investigando o dilema (carreira/amor) explorado à exaustão em longas com figuras semelhantes. Já Stevie, que também se rebela contra as expectativas paternas/maternas, parece bem mais disposta a sacrifícios profissionais para fazer o relacionamento continuar dando certo. Angel Kristi Williams não mergulha nas profundezas dessa distância entre o homem validado pela sociedade em busca de seus sonhos e a mulher levada subliminarmente a pensar antes na harmonia doméstica. No entanto, a colocação está ali, à disposição de quem quiser pensar o namoro e tudo que nele acontece a partir desse prisma. Really Love apresenta um discurso amoroso atravessado por questões de ordem racial, preservando subjetividades e as situando no âmbito coletivo (como ao comentar a gentrificação de Washington). Além disso, o filme ainda carrega as diferenças entre o querer e o poder, sinalizando ainda que nem sempre os rompimentos significam que a empreitada romântica falhou.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *