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Crítica


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Sinopse

Em Receba!, Amadeu e sua namorada, Gina, estão precisando de dinheiro, e por isso acabam se metendo numa enrascada. Mas, as coisas parecem mudar de rumo quando ele encontra uma bolsa recheada de dinheiro. Será que isso coloca um fim nos problemas de ambos?

Crítica

Há uma ingenuidade latente já nas primeiras tomadas do longa baiano Receba!. Numa delas, dois amantes estão diante de um apartamento antes de se despedir. Os gestos dos atores são mecânicos, pouco naturais, logo deixando perceptíveis as marcações de cena – a gente consegue captar que antes mesmo de acabar uma fala, ambos se preparam ao próximo movimento. E isso produz artificialidade num momento que deveria prenunciar uma angustiante descida ao inferno. Após meias conversas telefônicas, Amadeu (Daniel Farias) chega à produtora de filmes pornográficos na qual trabalha logo quando alguém acabou de ser assassinado. E ele foge com o espólio: cinco quilos de cocaína. Está armado o cenário para um daqueles jogos de gato e rato entre bandidos, pés-de-chinelo e polícia. Até porque evidentemente a droga ilícita é de alguém que não ficará feliz ao saber do furto. Mas, os cineastas Rodrigo Luna e Pedro Perazzo não conseguem imprimir no filme essa urgência/tensão quase inerente ao gênero, constantemente gerando situações cômicas involuntárias. A espessura dramática dos personagens, suas dificuldades, dúvidas, as contradições, ou seja, qualquer traço de complexidade se esvai por conta da encenação que tenta se focar na ação, na movimentação, nas perseguições, ou seja, nos elementos que constituem as bases do filme policial, mas sem o investimento necessário para amarrar tantos nós. As coisas seriam outras se o viés paródico fosse assumido como um trunfo.

Mas, Receba! não é uma paródia – embora às vezes se pareça com uma. Se trata de uma realização que pretende dar temperos regionais a um tipo de produção comum no cinema estadunidense e em certas áreas da Europa. No Brasil, o filme policial é frequentemente atrelado ao melodrama social, ou seja, ao entendimento de mecanismos que geram as desigualdades de classe e, por sua vez, sublinham as dores dos homens e mulheres colocados à margem que, por isso, são transformados em subprodutos agressivos da exclusão. Neste filme não há tal reflexão, mas uma tentativa de organizar arquétipos bastante simples em torno da lógica "alguém se enrascou mais ainda justamente quando tentava encontrar saídas viáveis de uma enrascada". Temos o mocinho que não é lá tão inocente; a namorada que desempenha a função de cúmplice; o poderoso chefão com pinta de bicheiro; os dois capangas encarregados do trabalho sujo; e o desconhecido que entra de gaiato no navio. Porém, o que enfraquece o resultado é a organização meio frouxa disso tudo. A descoberta do cadáver, o achado do dinheiro que pode tirar o protagonista da lama, a ação do sujeito que estava tentando encontrar alguém para alugar um quarto vago; os arroubos moralistas da vizinha da frente. Todas essas circunstâncias heterogêneas têm um peso excessivamente parecido. Rodrigo Luna e Pedro Perazzo perdem o controle sobre a trama ao ponto de tudo fazer mais sentido se for compreendido como uma brincadeira. Há inserções humorísticas, gestos que visam produzir graça, mas em nenhum momento essa vocação é abraçada.

Quando os capangas vão atrás da cocaína, eles procuram onde? Numa academia de CrossFit. Essa brincadeira é boa, assim como os títulos das sátiras pornográficas de filmes de sucesso. Por outro lado, há instantes em que a comédia é involuntária, como quando o vizinho insiste para um rapaz assinar a petição em prol da contratação do segurança armado. Era para ser relativamente sério, quem sabe até utilizado para criticar uma mentalidade, mas acaba soando algo ridículo. Afinal de contas, essa figura serve para personificar a cafonice dos cidadãos que preferem ver todos armados ou o contrário? Sim, pois em dado momento a bandida diz: “está perigoso trabalhar, todo mundo está armado agora”. Mas, era para zombar dos tarados por trabucos ou sinalizar eles como “perigosos para a bandidagem”? Quanto ao elenco, parece que apenas Evelin Buchegguer compreende o delicioso potencial irônico daquilo e resolve construir uma figura propositalmente caricatural e histriônica. Algo distante da dedicação da ótima protagonista Edvana Carvalho para conferir espessura trágica à sua personagem, a ex-atriz de filmes pornô que atualmente é boxeadora e namorada do homem perseguido pela bandidagem. Aliás, essa mulher tem muitas camadas, e elas fariam sentido dentro de uma lógica bem mais assumidamente exagerada. Como dizemos no jargão da crítica cinematográfica: parece que os membros do elenco estão fazendo filmes diferentes, vide a discrepância entre esses tons e intenções.

É difícil “comprar” Receba! como um filme intenso. Porém, não é menos complicado compreendê-lo como comédia. Ele acaba ficando num meio caminho incômodo, sobretudo em virtude da dificuldade para dar credibilidade a certas passagens, tais como a morte do personagem por atropelamento. A maquiagem faz sua parte, ou seja, torna verossímil o corpo se esvaindo em sangue, mas o ator coloca toda a intensidade emocional da cena a perder com suas expressões tipificadas de moribundo. E a trucagem da montagem não camufla as dificuldades e os claros desafios de uma produção feita com baixíssimo orçamento. Algo parecido pode ser dito da mulher soterrada: a cenografia manda bem, o mesmo não podendo ser dito da encenação que deixa ações e reações novamente à mercê de interpretações atravessadas  – a cena do policial feliz com a biblioteca é um exemplo disso. Os problemas são estruturais. O roteiro presta mais atenção aos tipos do que àquilo que poderia lhes dar personalidade; está mais preocupado com a suposta rede de intrigas e o pretensamente intrincado labirinto de vilões e mocinhos do que com a necessidade de tornar saboroso esse percurso absurdo. Infelizmente, Rodrigo Luna e Pedro Perazzo não transformam a precariedade (o atropelamento, o acidente doméstico, etc.) em linguagem, numa consciência de ser. Eles empilham situações pouco convincentes – todas as na casa do chefão, o crime cometido por Gina, a dinâmica dos vizinhos de porta, a movimentação dos capangas pela cidade –  e exercitam uma clara paixão por esse tipo de filme.

Filme visto durante o 25º Cine PE, em novembro de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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