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Crítica


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Sinopse

Lari ainda sofre com a morte recente do pai quando sua mãe sugere uma viagem para a praia, onde costumavam passar os finais de semana em família. Esta será a oportunidade para a adolescente conhecer uma receita de caranguejo passada de geração em geração.

Crítica

Este drama investe numa ambiciosa representação pela ausência. O tema central de Receita de Caranguejo (2019) diz respeito ao luto em função da morte do pai/marido. Confrontadas ao trauma recente, mãe e filha são incapazes de discutir o assunto, porém transmitem o pesar nos gestos cabisbaixos e na comunicação truncada dentro de casa. Ao viajarem para a praia, onde costumavam passar o fim de semana juntos, encontram um par de chinelos masculinos e algumas camisetas no armário. As sequências gritam a ausência do pai, embora o curta-metragem evite recursos óbvios como fotografias ou flashbacks. Caberá ao espectador imaginar este homem e projetar sua própria experiência de perda. Existe um gesto solidário na postura da diretora Issis Valenzuela, que se recusa em colocar o dedo na ferida aberta das mulheres, embora tampouco minimize a dor da orfandade. Em paralelo, convida o público a se enxergar no incômodo passeio repleto de símbolos ironicamente reforçados pelo fato de não se falar a respeito. Lari (Thaís Melo) menstrua, mas esconde o acontecimento da mãe. Esta faz ligações familiares nas quais se discute o destino dos objetos pertencentes ao marido, porém exclui a adolescente da conversa. Caso o pai aparecesse de maneira explícita, através da relação afetiva com objetos específicos ou em inserts fantasmáticos, o resultado se tornaria referencial demais. Felizmente, o texto aponta para simbologias menos óbvias - caso do par de chinelos comuns, desprovidos de conotação afetiva especial - eles pertenciam ao falecido, e isso basta para sublinhar o desconforto. 

O deslocamento ao litoral transparece a disposição de se confrontar à memória do falecido - em outras palavras, um primeiro passo para concretizar o luto. O excelente roteiro amplia sua potência através do mar e dos seres aquáticos: conforme a menina assiste a programas de vida marinha na televisão, ela experimenta caranguejo pela primeira vez. Os signos são utilizados para evocar a dicotomia vida/morte: a receita passada de geração em geração representa a continuidade dos laços entre as mulheres, ainda que os crustáceos precisem morrer de modo violento para isso. O bicho alimenta, mas também fere o dedo da menina com sua carapaça dura. O sangue da menstruação evoca o prosseguimento (ela está se tornando uma mulher adulta), mas também a interrupção (ela deixa de ser criança, precisando efetuar esta segunda despedida em paralelo). Os mecanismos de defesa e camuflagem dos peixes e outros animais no fundo do mar revelam um dinâmico ciclo de renovação. Em última instância, a narrativa promove um olhar à circularidade da natureza: para que alguns organismos cresçam, se desenvolvam e reproduzam, é preciso que outros morram. Na “ordem natural das coisas”, espera-se que os pais partam antes dos filhos, ainda que a aceitação da morte, sobretudo nas culturas ocidentais, permaneça um tabu. A escapada à beira mar também condensa esta contradição: é perfeitamente comum as protagonistas passarem tempo sob o sol, embora seja artificial fingirem que se trata de um final de semana qualquer, ao invés da primeira vez que voltam ao local sem o pai.

A direção permite ao espectador onisciente se converter nos olhos da casa, descobrindo tudo o que as protagonistas fazem, embora uma e outra não saibam das atitudes alheias. Estamos presos com Lari no banheiro durante a descoberta da menstruação, e dentro do quarto quando a mãe faz a ligação telefônica. Na hora de mencionar o temperamento difícil da garota, entretanto, descobrimos a reação da jovem sentada no sofá da sala. Os caranguejos são vistos sucessivamente pela mãe, para quem os bichos significam a oportunidade de um raro banquete, e pela filha, para quem as patas se debatendo na panela oferecem uma cena de terror. O trabalho sonoro intensifica os sons ao limite da fantasia: conforme os animais se escurecem e adquirem luzes fluorescentes, o trabalho sonoro sugere uma monstruosidade orgânica com o movimento em meio a uma gosma ou secreção. Durante a fervura, o objeto adquire tamanha tensão que se assemelha a uma bomba. Na perspectiva da garota, o cozimento dos crustáceos vivos se converte num ritual fascinante e assustador em igual medida. O procedimento fantástico encontra seu ápice na imagem final, explorando os efeitos visuais de maneira simultaneamente delicada e ostensiva, ou seja, eles se fazem presentes, porém não roubam o protagonismo da garota. A imagem condensa a poesia e a noção de perigo buscadas pela cineasta. Caso fosse inserida em outro projeto, a conclusão poderia se adequar a uma história de terror ou a uma aventura infantil.

No elenco, Preta Ferreira transmite corporeidade e fala de impressionante naturalidade - poucos projetos conseguem obter este nível de leveza de seus intérpretes. Quem dera todas ficções de vocação realista contassem com uma atriz à altura da ativista e escritora. Thaís Melo não possui conforto semelhante com a própria imagem, porém tampouco se sai mal nas cenas solo. Aliás, o encontro entre uma personagem sólida e outra vacilante opera a favor da obra - a transmissão de conhecimento entre gerações se torna plausível por meio da diferença de registros. O roteiro de Receita de Caranguejo possui a qualidade de acenar a pequenos indícios de uma vida cotidiana, incluindo passagens de função narrativa limitada, porém enriquecedoras para a identificação do espectador - caso do erro na trajetória do GPS, do cheiro de mofo na casa fechada, do apego da menina pelos telefones celulares e da decisão de se sentar no sofá, ainda suja de areia, ao invés de ir para o banho. O curta-metragem vai além de cenas funcionais e estritamente necessárias ao desenvolvimento do conflito rumo à conclusão: ele valoriza a interação verossímil entre as mulheres, priorizando momentos banais ao término da viagem. Levando em consideração a fluidez da montagem e a qualidade das direções de arte e de fotografia, competentes sem chamarem atenção excessiva a si próprias, resulta numa obra de impressionante maturidade.

Filme visto online no VI Cine Jardim: Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim, em agosto de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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