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Sinopse

Após ser expulso da faculdade de direito por plágio, o jovem Tomasz encontra trabalho numa agência que gerencia mídias sociais. Ele se torna responsável por criar perfis falsos e promover a difamação de celebridades e políticos poloneses. Aos poucos, Tomasz descobre seu talento na arte da manipulação digital, enquanto descobre os efeitos perversos das fake news na vida das vítimas.

Crítica

O tema desta produção não poderia ser mais contemporâneo: o impacto das fake news e campanhas de difamação tanto na vida privada das vítimas quanto na política nacional. Ainda que a trama se passe na Polônia, o país europeu enfrenta uma situação análoga àquela do Brasil, com governos de extrema-direita, conservadorismo cristão, xenofobia, homofobia e afins. Seria tentador se embrenhar por grandes grupos criadores de notícias falsas – os “gabinetes do ódio” poloneses -, porém o diretor Jan Komasa toma a precaução de evitar o espetáculo e o panfletarismo a se focar na história de um único garoto. Tomasz (Maciej Musialowski) é contratado para criar perfis falsos em redes sociais e estimular movimentos de repulsa a celebridades e políticos nacionais. É importante lembrar que o jovem não possui qualquer talento de hacker nem habilidade sobre-humana de manipulação de dados: os conhecimentos empregados na tarefa estão à disposição de qualquer consumidor comum de Facebook, WhatsApp e afins. A única qualificação do protagonista para desempenhar a função se encontra em sua moral flexível: ele é definido como plagiador (motivo de sua expulsão da faculdade), e como pessoa sem nada a perder, por não ter família nem amigos.

Rede de Ódio (2020) navega entre o particular e o universal. Por um lado, sugere que o anti-herói constitui um caso limítrofe e atípico dentro da sociedade, por utilizar escutas telefônicas e outras ferramentas de espionagem, sem qualquer tipo de remorso decorrente de seus atos. Por outro lado, insiste que o jovem efetua algo que muitas pessoas poderiam fazer, e certamente fazem, de maneira mais ou menos organizada. Parte das motivações de Tomasz em destruir a campanha de um candidato a prefeito dizem respeito a comprovação de sua masculinidade à garota que ama (motivo de impacto privado), enquanto outra parte provém de se sentir importante, capaz de influenciar os rumos do país através de contas falsas, boatos e perfis fictícios (motivo de impacto público). O personagem não se torna nem um grande líder das fake news, nem uma vítima das circunstâncias. Este meio-termo se torna essencial para desenhar um garoto multifacetado, que em diversos momentos remete ao adolescente talentoso, porém obsessivo, de Dentro da Casa (2012). As manipulações serão descobertas por poucas pessoas, ainda que surtam impacto gigante. Esta seria a lógica potente da desinformação em massa: impacto máximo para esforço mínimo, ou ainda uma criminalidade perversa – visto que calúnia, difamação, injúria e falsidade ideológica constituem delitos – permitida pelo anonimato.

Deste modo, o roteiro dedica esforços consideráveis à construção psicológica do protagonista, algo raro dentro de um filme político sobre grandes movimentos sociológicos. Compreendemos de que maneira a distância dos pais, os tênues laços sociais e a masculinidade frágil operam na decisão de participar das campanhas secretas. Ele deseja se afirmar, tomar controle de sua vida, ser admirado. Tomasz passa a criar narrativas, ainda que fictícias, assim como um artista e storyteller – com o diferencial de sugerir a veracidade das criações, o que constitui uma barreira ética fundamental. Não se exagera na solidão nem na impressão de fraqueza psíquica, porém os dois elementos estão presentes. Maciej Musialowski trabalha com olhos vidrados, quase possuídos diante das telas dos computadores, em contraste com o corpo franzino. Ele transmite o prazer de cometer crimes impunemente, por se descobrir bom nesta tarefa. Espertamente, a narrativa o coloca diante de uma figura materna postiça (a excelente Agata Kulesza, com cuja personagem o protagonista resolve seu complexo de Édipo) e uma figura paterna, na pele do político Pawel (Maciej Stuhr). Mesmo enquanto desenha um claro retrato da nação, o filme jamais abandona a complexidade do personagem.

Rede de Ódio também toma tempo na condução narrativa, permitindo que o desenvolvimento do garoto ocorra de maneira verossímil, e também demonstrando boas escolhas estéticas. Komasa opta por uma curiosa montagem paralela entre temporalidades diferentes: momentos passados em horas distintas, envolvendo os mesmos personagens, são entrecortados pela montagem, causando belo efeito de desorientação (vide as cenas da festa noturna e da confraternização política). A trilha sonora contribui para provocar um distanciamento do real: durante uma festa, a música eletrônica é substituída por outra, lenta e perturbadora, quando imergimos no ponto de vista de Tomasz. Uma caminhada noturna é acompanhada por uma inesperada música clássica, enquanto as primeiras conquistas do manipulador das redes sociais se colam a uma melodia brincalhona, lúdica, envolvendo xilofones. Cenas fundamentais ocorrem em planos-sequência (o clímax com o discurso de Pawel antes das eleições, o reencontro com Gabi), enquanto afrontamentos tensos trazem planos próximos e velozes (o duelo entre Tomasz e Beata). Ainda que muitas cenas apostem numa elegância impessoal, nota-se um pensamento prévio para cada sequência ou imagem. Nada soa aleatório.

Isso não impede que a narrativa vá longe demais em alguns momentos, sobretudo na escalada meteórica do protagonista dentro da política. A aproximação entre Tomasz e Pawel é inverossímil, assim como as atitudes do candidato e a influência do garoto dentro do partido. Outros recursos facilitadores são questionáveis: a maquiagem excessivamente pesada para deixar o garoto, os retornos inesperados de Gabi durante momentos-chave. O protagonista se infiltra em casas, prédios vizinhos àqueles de seus inimigos e nos quartéis-generais de campanhas políticas com uma facilidade espantosa. O projeto corre o risco de se tornar demonstrativo, extrapolando a lógica em nome de uma exposição mais clara de seu tema. Algumas concessões seriam aceitáveis dentro da lógica da ficção e do suspense, porém outras constituem atalhos artificiais demais – cabendo ao espectador decidir onde se traça o limite da verossimilhança, é claro. Felizmente, o filme brinca com um falso happy ending, onde tudo e nada se resolve: desenha-se uma ilusão de amor, de família, de vitória e de reconhecimento via redes sociais. No entanto, algo no olhar do competente Maciej Musialowski demonstra ciência da fragilidade destas conquistas, enquanto a imagem distante, captada de um prédio alheio, sugere que Tomasz se tornaria o próximo alvo de ataques digitais. O feitiço poderia virar contra o feiticeiro. O teor mordaz desta sequência conclui muito bem a história perturbadora sobre estes tempos de histórias absurdas surtindo efeitos profundamente reais.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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