Crítica
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Sinopse
Defensora pública que protege mulheres vítimas de abuso, Simone tem seus próprios interesses sexuais que podem a levar para um mundo em que a violência e o erotismo se interconectam.
Crítica
Vencedor do Leopardo de Ouro, prêmio máximo do Festival de Locarno, Regra 34 começa mostrando Simone (Sol Miranda) exercendo a atividade de cam girl. Ela satisfaz os desejos de uma plateia protegida pelo anonimato, que paga remotamente por insinuações e ações de cunho sexual. Apenas o corpo de Simone está exposto nesse escambo em que o tesão vira produto numa embalagem capitalista. Notem que, como atrativo de venda, Simone intensifica gemidos e sugestões excitantes à medida que as recompensas financeiras vão entrando na sua conta. Alguns podem afirmar: assim ela contribui à manutenção de uma dinâmica patriarcal que restringe o prazer feminino ao olhar masculino. Porém, há também aqueles que podem entender a cena como: a protagonista se apropria das engrenagens essenciais do capitalismo e exerce plenamente a sua liberdade para acumular poder (simbolizado pelo dinheiro). O mais interessante no novo longa-metragem de Julia Murat é justamente a negação de respostas maniqueístas diante de gestos e enunciados passíveis de contradições e paradoxos. Assim, o filme é um respiro na nossa realidade (inclusive cinematográfica) em que os debates se esgotam precisamente nas buscas apressadas por verdades pretensamente incontestáveis. Portanto, é muito bem-vinda essa porosidade do discurso, pois ela revela múltiplas e diversas complexidades.
Julia utiliza uma falsa simetria como estratégia de provocação. Talvez ela seja pouco esclarecida como forma enganosa de estabelecer paralelos. Simone trabalha como cam girl satisfazendo os desejos de clientes, inclusive, para sustentar os estudos na área do Direito. Ela está fazendo formação para se tornar defensora pública, especificamente auxiliando mulheres vítimas de maus tratos em relacionamentos abusivos naturalizados por um machismo estrutural. E esse local de estudo oferece ao filme a desculpa para certas questões serem escancaradas em debates pedagógicos, o que se torna uma espécie de muleta, pois "justifica" o surgimento das pautas em meio aos dilemas da protagonista. Não são poucas as vezes em que a sala de aula se torna abertamente palco de retóricas contrastantes sobre assuntos que atravessam determinantemente o tecido social – racismo, feminicídio, poder do Estado, criminalização das maiorias minorizadas, fragilidade do próprio conceito de “fazer justiça”, legalização da prostituição, entre tantos outros. Por um lado, é fundamental que esses embates exponham a existência de nuances sobre tópicos que costumam ser simplificados. Mas, por outro, o tom didático encarado como orgânico (afinal de contas as salas de aulas são locais recorrentes) acaba servindo para dar margem às contradições que podem ganhar indícios de hipocrisia por falta de elaboração.
Oras, Simone pode ter atitudes antimachistas e empoderadas no âmbito público, racionalmente ciente dos processos históricos aos quais é submetida como mulher , e gozar seus fetiches na esfera íntima sem ser convocada à culpa. No entanto, Regra 34 acaba dando mais evidências ao que pode ser lido como incoerente aos olhos de muitos do que enfatizando a impossibilidade de chegar infalivelmente à coerência entre público e privado. Simone possui consciência de classe, de gênero e histórica, mas isso nem sempre afeta de modo semelhante as oscilações do querer. “Me desculpe se meu desejo não é suficientemente político para você”, diz Simone ao ser confrontada (supostamente como hipócrita) pela namorada vivida por Lorena Comparato (representante de um posicionamento mais cartesiano). Faltam instantes como esse em que a protagonista reivindica abertamente o direito ao exercício da liberdade sexual diante dos olhares reprovadores, mesmo o de pessoas que argumentam ter um pensamento progressista. Simone demonstra a intenção de satisfazer o espectador que pede a ela uma autoasfixia erótica. E esse ímpeto quase autodestrutivo não ganha atenção suficiente para iluminar os desígnios do desejo nem sempre condizentes com as normas e as consciências moral/éticas. Simone carrega a contradição efetivamente como signo de existência, haja vista a sua defesa das regras penais enquanto nega aquilo que pode enquadrar o tesão (como os protocolos de segurança do BDSM).
Julia Murat opta por uma encenação sem malabarismos visuais, numa pegada mais despojada e direta que não enfatiza, por exemplo, os imaginários do trabalho de Simone como cam girl. Nesse sentido, Regra 34 é muito diferente de filmes como Tinta Bruta (2018), nos quais o exercício dessa atividade remunerada ligada ao erótico é carregada de camadas de percepção distintas (realista, erótica, lúdica, etc.). Aqui, o importante é focar-se nas incompatibilidades entre os comportamentos íntimo e profissional de uma mulher atenta às exigências patriarcais. E essa atenção essencial a uma contradição (sinalizada como tal constantemente, vide os avisos da namorada e da amiga) quase vira um tiro saindo pela culatra, assim como o trisal em que, embora todos sejam bissexuais, o homem exerce um papel patriarcal no centro do relacionamento com duas mulheres. Quanto à Simone, ela sabe que o trabalho de cam girl beneficia uma cadeia machista, mas não se permite reprimir o seu querer por conta dessa sua condição de saber. E quem há de condená-la sem passar, nem que seja um pouco, atestado de autoritário? Como alguém determina o que deveria ou não provocar tesão em outrem? Porém, também estará dotado de razão quem aponte o fundamento machista do capitalismo. Então, embora seja um pouco sabotando pelo esquematismo (ação responsável do ponto de vista da preservação da mulher + propensão à práticas agressivas com intenções sexuais = contradição à disposição), o que o filme tem de melhor é o oferecimento desse terreno fértil para os debates sem respostas fáceis.
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