Crítica
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Sinopse
Desde pequena, Aretha Franklin se dedicou à música dentro das igrejas e nos grandes concertos pelo mundo. Apesar do talento evidente, lutou contra graves traumas de infância, maridos abusivos e empresários que tentaram controlar a sua carreira. Na busca por novos sucessos, quase se perdeu no vício pelo álcool, até reencontrar seu caminho graças à música gospel.
Crítica
Respect: A História de Aretha Franklin (2021) constitui uma biografia premonitória. Os espectadores sabem que ela se tornou um dos maiores ícones da música norte-americana, no entanto o roteiro decide comprovar este fato através de evidências coletadas ao longo da vida. Na primeira cena, a garotinha é acordada pelo pai para cantar aos convidados numa festa, e demonstra impressionantes dotes vocais. Alguém sugere que ela conquistará a fama quando crescer. Na cena seguinte, a mãe avisa: "Você não precisa temer nenhum homem". Terceira cena, e nova previsão: “Você não precisa cantar se não quiser”. Quarta cena, quarta mensagem: “A música salvará sua vida”. Sabemos que todas estas informações-promessas se concretizarão: o reconhecimento musical, a vivência de abuso doméstico, a obrigação de cantar contra sua vontade, a reabilitação graças à arte. Post hoc ergo propter hoc. Ora, o que dizer de tantas garotinhas com belas vozes em igrejas sulistas, que jamais adquiriram o status da cantora? Por que estas não estariam predestinadas aos holofotes? O longa-metragem enxerga no caso excepcional uma lição disponível a todos: basta se esforçar, amar a música e a Deus, para seguir um percurso tão estelar quanto a diva do soul. Se este raciocínio fosse verdadeiro, teríamos milhares de Arethas por aí. A crença meritocrática dispensa fatores essenciais, a exemplo da situação financeira, a criação, referências culturais e sociais. Para o bem ou para o mal, houve apenas uma mulher como ela. Virão outras, melhores ou piores, mas este seguirá um caso único.
A biografia efetua muitas escolhas admiráveis. Em primeiro lugar, foca-se por completo na música, motivo que levou a protagonista ao reconhecimento. Diversas biopics são seduzidas pela ideia de espetacularizar as dores, os traumas com maridos abusivos e empresários violentos — o que implica em romantizar o sofrimento, convertido em motor criativo. Estes fatores estão presentes neste caso, porém em segundo plano: as brigas com o marido Ted White (Marlon Wayans) e com o pai C.L. Franklin (Forest Whitaker) condicionam o tom das apresentações da artista nos palcos (mais tristes ou vigorosas). Felizmente, Jennifer Hudson nunca utiliza próteses para se parecer com a cantora original, e interpreta a integralidade das canções em sua própria voz. O imperativo de “copiar” o biografado desaparece, pois a diretora Liesl Tommy compreende que a importância de Aretha Franklin transcende os traços específicos de seu rosto e o timbre exato de sua voz. Livre para compor sua versão pessoal da heroína, Hudson adota um viés assumidamente subjetivo. A entrega nas performances de música gospel soa realista pelo fato de terem sido gravadas, de fato, pela atriz em estúdio. Assim, a busca pelo naturalismo distingue o filme de demais projetos idealizados. As partes obscuras no passado da estrela estão presentes, porém de forma discreta, sem dominar a narrativa — a diretora prefere se focar no que ela ofereceu enquanto criadora.
Certas escolhas de elenco são interessantes, rompendo com a previsibilidade das biografias musicais. Marlon Wayans constitui um nome inesperado para o marido agressor, porém o ator o encarna com seriedade e discrição. Outro humorista, Marc Maron, explora o excelente ritmo cômico para criar uma dinâmica interessante no papel de Jerry Wexler. Os momentos com o empresário permitem uma leveza oposta à solenidade do conjunto. Forest Whitaker demonstra o talento impressionante para os tipos tirânicos, porém dotados de boas intenções; enquanto Tituss Burgess (mais um nome da comédia) atenua os trejeitos para compor uma figura angelical, espécie de amigo imaginário da cantora (vide a cena das mãos enlaçadas por trás das costas). Por sua vez, Jennifer Hudson compõe uma versão cândida e tímida da personagem real. A voz sussurrada, o olhar doce e o temperamento gentil diante das explosões de raiva alheias transformam a biografada uma figura etérea, ausente, cujo vigor se descobre apenas nos palcos, com o microfone nas mãos. A fragilidade excessiva pode incomodar nos dois primeiros terços, dedicados à ascensão da comportada filha do pastor. Em contrapartida, chegados os momentos de catarse, quando a maquiagem e o penteado exageram as dores de Aretha ao limite da caricatura, o comedimento na atuação fornece um bem-vindo equilíbrio. Esse registro constitui o oposto do que a atriz havia feito em Dreamgirls: Em Busca de um Sonho (2006) e Cats (2019), comprovando sua versatilidade.
Por outro lado, certos fatores afetam negativamente a experiência. O roteiro trabalha com uma divisão rígida em três atos: juventude e amadurecimento; consagração; recaída e redenção. Ora, ao invés de elaborar um processo permitindo transitar entre estes momentos organicamente, os blocos se atropelam de maneira abrupta. Num instante, a carreira decola com inúmeros contratos e concertos de sucesso. Corte simples da montagem, e a protagonista se encontra deitada no sofá, com os colaboradores reclamando que precisarão “cancelar mais um show”. Ora, o que aconteceu? Aretha sobe nos palcos embriagada, sem que o espectador compreenda de que maneira se passa da sobriedade ao alcoolismo em um segundo. Chegando em casa após uma viagem, a jovem cantora percebe a indiferença dos filhos: “Cada vez que eu volto, eles me querem menos”. Mas essa rejeição nunca tinha acontecido antes. Pela decisão de retratar a passagem da infância à fase adulta, num intervalo de várias décadas, a cineasta permite que episódios fundamentais sejam mal contextualizados, apesar da duração generosa de 150 minutos. O foco se encontra menos na psicologia do que nas passagens obrigatórias: as músicas centrais, as trocas de empresários e maridos. Nos habituais letreiros de conclusão, enunciam-se todos os troféus e recordes estabelecidos por Aretha Franklin, numa espécie de super currículo. Falta sutileza para a construção de causas e consequências.
Enquanto isso, a diretora de fotografia investe em estranhas imagens com as bordas escurecidas, num efeito “vinheta" que se aproxima do truque de íris de produções antigas. Comportado em excesso, Respect: A História de Aretha Franklin não fornece sequências inventivas, inesperadas, provocadoras, nem busca metáforas ao estado emocional da protagonista. Segue-se uma linearidade acadêmica, tão funcional quanto contestável — sempre haverá uma incongruência em representar uma pessoa que rompeu padrões de modo padronizado. Artistas revolucionários merecem filmes revolucionários, emprestando de seus personagens a coragem para tomar riscos — o que realmente resultaria numa adaptação à altura. Ao final, o discurso encontra um elemento capaz de costurar infância, juventude e fase adulta: a premissa dos “demônios" que a personagem precisou combater. O termo inerente ao vocabulário religioso se presta tanto à importância do cristianismo para a cantora quanto aos traumas devido ao estupro na infância, e às dores decorrentes da convivência com homens tóxicos. “Não vá para este lugar escuro”, “Me ajude a lidar com meus demônios”, evocam os diálogos. Liesl Tommy insiste que por trás de tamanha energia nas interpretações havia uma melancolia permanente, que Jennifer Hudson interpreta como timidez, e a fotografia traduz em imagens tristes, ocres, sombrias. Mesmo assim, a projeção se encerra com um mural desfocado de Jesus Cristo. O discurso pretende viajar do céu ao inferno, e de volta aos céus. Trata-se de uma leitura tradicional, porém pertinente à figura de Aretha Franklin.
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Crítico | Nota |
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Bruno Carmelo | 6 |
Francisco Carbone | 3 |
Daniel Oliveira | 5 |
Chico Fireman | 4 |
MÉDIA | 4.5 |
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