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Sinopse

O cineasta Jonathan Perel estaciona seu carro diante de edifícios que serviram de sede a indústrias ou empresas argentinas. Ele lê os relatórios que mostram como elas sacrificaram seus empregados engajados durante a ditadura.

Crítica

O documentário parte de um conceito que, no papel, certamente pareceu genial ao criador. Por que não confrontar as grandes empresas argentinas pelo papel que desempenharam durante a ditadura militar? Que tal enumerar os assassinatos, sequestros e abusos de autoridade cometidos pelas diretorias, ou ainda pelos militares com conivências do alto escalão da Ford, Fiat, Swift e afins? O diretor Jonathan Perel decide se deslocar de carro através de diversas cidades argentinas. Diante das fábricas e usinas, lê os relatórios oficiais sobre todos os crimes contra a humanidade de que são acusadas. Ele toma a precaução de iniciar o filme com a leitura da cláusula penal que o permite verbalizar publicamente estes documentos oficiais, talvez antecipando processos e retaliações. Assim, sempre dentro de seu carro, funcionando enquanto voz condutora, o cineasta faz com que os abusos contrastem com a aparência calma e insuspeita daquelas fachadas. O cineasta cria seu próprio J’accuse, sua compilação não apenas de crimes, mas também de impunidades percebidas como comuns, ou pelo menos aceitáveis, dentro do mundo empresarial argentino – afinal, as empresas continuam em funcionamento.

No entanto, a performance política de Perel enfrenta limitações evidentes. Do primeiro ao último minuto, a narração enumera os fatos de empresa após empresa, sem contextualizar os crimes, sem buscar particularidades, ou ainda as subjetividades envolvidas nessa história. Não há um único rosto ao longo de todo o longa-metragem – nem o do cineasta, nem aquele das vítimas ou dos criminosos. Por mais que nomes sejam citados em alguns casos, eles tornam estes históricos equivalentes. Em última instância, cria-se a impressão de que todas as empresas eram iguais, assim como todos os sindicalistas. Ora, em que medida essas manifestações sindicais se ergueram? Como as famílias reagiram a tantos sequestros e assassinatos? Quais responsáveis foram ao menos investigados pela polícia? A sucessão impassível de leituras monocórdias impede a análise os casos para além dos autos e, ironicamente, contribui a gerar certa anestesia na comunicação. O diretor não efetua nenhum esforço para expandir, aprofundar ou desenvolver o dispositivo dos planos fixos registrados de dentro do carro. A partir de dez minutos, tem-se a impressão de ter acompanhado o filme inteiro, repetido até a conclusão. Tamanha apatia das formas e do ritmo prejudica bastante o projeto, sobretudo por sua natureza militante.

Além disso, a questão do ponto de vista merece questionamento. O que faz de Perel o porta-voz unilateral deste problema? Visto que ele nunca representa os conflitos narrados em imagens (seja através de material de arquivo, seja por metáforas capazes de dialogar com a violência), que comprovação teríamos da relação entre as empresas e seus crimes? Apesar das conhecidas evidências sobre os diversos assassinatos e violações praticados pela ditadura argentina, precisamos confiar no cineasta sobre os números e dados fornecidos, diante de cada fachada específica. Nada os une além da montagem, e nenhuma outra voz permite corroborar o discurso exceto pela voz do cineasta, que desempenha as funções de direção, roteiro, montagem, produção, som e finalização. Na prática, qualquer pessoa poderia parar o carro em frente à fachada de qualquer empresa e começar a narrar atrocidades. Mesmo que estejamos dispostos a acreditar nos relatos graves, nada nos permite refletir sobre as denúncias por algum meio fundamentalmente cinematográfico. Relata-se um conflito sem conflitos, um gesto de indignação sem indignação, a representação de atos desumanos sem que o cineasta resgate qualquer humanidade aos casos. As pessoas se tornam nomes, números, relatórios de um passado curiosamente desconectado do presente. Como esses casos ecoam na Argentina contemporânea?

A paixão por documentos e relatórios não precisaria necessariamente conduzir a um resultado enfadonho. Em Letra Maiúscula (2020), Radu Jude estuda a ditadura de seu país, a Romênia, através da leitura exclusiva de relatórios oficiais escritos pela polícia de Estado. No entanto, ele faz com que os textos sejam lidos por atores apáticos dentro de cenários completamente artificiais, o que serve para ressaltar o absurdo e a falsidade das alegações. Em outras palavras, há um evidente esforço de representar através da forma o ponto de vista da direção a respeito do material protocolado. Perel, em contrapartida, limita-se a constatar o problema, como se os dados pudessem provocar uma reflexão por si mesmos (e como se o criador estivesse isento de fazê-lo). O cineasta não efetua qualquer investigação pessoal, seja nos porões da História nacional, seja na iconografia e mesmo na montagem. Não há qualquer forma instigante de ruído ou atrito entre forma e conteúdo, ou entre discurso e representação. Seja pela frontalidade das imagens, ou pela leitura bruta dos papéis em off, este se torna um documentário de superfície, em todos os sentidos do termo: superficial enquanto estudo de caso, insuficiente enquanto articulação cinematográfica, e sobretudo inócuo enquanto discurso de um leitor anônimo a interlocutores imprecisos, sem envolver nem as vítimas, nem os algozes no episódio em que estão diretamente implicados.

Responsabilidade Empresarial logo perde a aura de um cinema corajoso sobre o confronto do indivíduo face às grandes instituições. Pelo contrário, a iniciativa revela-se covarde: o carro permanece à distância das empresas, longe dos empresários, longe dos outros arquivos, ou de qualquer fonte orgânica de conflito. Na locução final, o diretor explica didaticamente sua iniciativa, como se nos permitisse ler a linha dos “objetivos” e “metodologia” deste projeto de pesquisa: “Abordagem sistemática e comparativa. Transcendendo os estudos de caso, para fazer visíveis algumas conexões e padrões que se desprendam do conjunto”. O texto continua, justificando o não-uso de atores e a terminologia “responsabilidade”. É curioso que o diretor precise explicar a obra dentro da própria obra, até por estar partindo de uma constatação tão clara (“fazer visíveis conexões e padrões”). Ele obtém sucesso na tarefa de explicitar as ligações entre as empresas criminosas, sublinhadas ao limite da obviedade. No entanto, jamais busca entender os movimentos que permitiram a tantas empresas saírem ilesas, ou ainda que possibilitaram esta cooperação entre militares e empresários. Resta um projeto tão empolgante quanto 68 minutos de leitura ininterrupta de um relatório jurídico.

Filme visto online no 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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